Miguel Thompson*
“É necessário assumir que só poderemos formar seres humanos integrais e cidadãos responsáveis se partilharmos nossas certezas e incertezas com toda a comunidade, sem julgamentos, vivenciando uma escuta ativa para chegar à solução dos muitos dilemas que emergem cotidianamente.”
Quando éramos pequenos, nos anos 1970, eu e meus amigos costumávamos fantasiar como seriam os anos 2000. Imaginávamos que no futuro haveria carros voadores, cidades suspensas, trabalhos automatizados e domésticas robôs, como a fiel Rosie da família Jetson — ao seu lado, George Jetson, Jane Jetson, e seus filhos Judy e Elroy compunham uma família típica dos anos 1960, uma configuração clássica de pai, mãe e filhos.
Embora muitas dessas previsões tenham se realizado, como os drones e as assistentes pessoais digitais, não imaginávamos que o clássico padrão de família, formado por pai, mãe e filhos, perderia espaço e novos perfis domésticos se configurariam nos lares brasileiros. Então, quando falamos de família atualmente, temos de pensar em várias estruturas: a avó, que mora com os filhos e os netos, mas que já não tem tempo de tomar conta das crianças porque viaja e vai a bailes; o padrasto que também é o pai; a mãe que cria os filhos sozinha; um casal homoafetivo que toma conta dos filhos conjuntamente.
Assim, o mundo VUCA, acrônimo em inglês que significa “volátil, incerto (U de uncertainty), complexo e ambíguo”, invadiu todas as instituições, e nem mesmo a família escapou desse universo flexível e dinâmico. Tratar todas as famílias como as tratávamos há 20 ou 30 anos já não faz sentido. Entender as necessidades de cada um desses agrupamentos familiares é fundamental para que a escola cumpra seu papel social e se mantenha como um serviço significativo à comunidade.
A família atual é cada vez menos hierárquica, isto é, seus integrantes negociam entre si as decisões a serem tomadas. Em muitos casos, a centralidade do pai vai sendo cedida para os filhos. No mundo VUCA, os filhos são a grande utopia da família. Dominam o controle remoto da TV (quando não assistem a seus programas pelos seus celulares) e muitas vezes têm a palavra final nas decisões familiares.
Essa mudança ocorreu não porque os pais tenham perdido toda a autoridade, mas porque muitas decisões cotidianas passam por recursos da cultura digital, desde consultar o Google a ser guiado por algum tipo de aplicativo, campo em que os jovens são imbatíveis, e por essa razão foram alçados a um protagonismo inimaginável tempos atrás.
No campo digital, também a escola vem perdendo espaço: as reuniões de pais vêm sendo esvaziadas ou inflamadas pelos grupos de WhatsApp de mães e pais. Se há algo da cultura contemporânea que nós, “imigrantes digitais”, dominamos, foi esse aplicativo de comunicação.
Desse modo, como a escola pode se relacionar com essa nova família e com a complexidade dos novos canais de comunicação? Primeiro, a escola deve ser transparente e aberta ao diálogo verdadeiro. É necessário assumir que só poderemos formar seres humanos integrais e cidadãos responsáveis se partilharmos nossas certezas e incertezas com toda a comunidade, sem julgamentos, vivenciando uma escuta ativa para chegar à solução dos muitos dilemas que emergem cotidianamente.
Vale reproduzir aqui a máxima atribuída às comunidades indígenas: “É preciso uma aldeia para criar uma criança”. Não nos serve mais a dicotomia entre a “família que educa” e a “escola que instrui”. O modo de vida contemporâneo, em que pai e mãe trabalham, avós são jovens e há cada vez menos espaço para o empregado de confiança da família, exige que essa educação seja partilhada por toda a comunidade.
A família deve conhecer, contribuir e concordar com o aperfeiçoamento do projeto político-pedagógico da escola, que por sua vez deve ser explicitado e seguido coerentemente pela comunidade escolar. Só assim os pais ou responsáveis entenderão os propósitos da escola e poderão avaliar se ela está de acordo com suas expectativas.
A escola deve buscar estratégias que aproximem os pais do cotidiano escolar. Ouvir, aceitar sugestões, apresentar argumentos sobre os pontos de vista de todos é cada vez mais importante para que os pais se sintam seguros e sejam parceiros na função conjunta de formar cidadãos responsáveis e seres humanos autônomos, críticos, empáticos e flexíveis.
Seguramente, se os membros da escola estiverem abertos e conectados ao propósito maior de formar as próximas gerações, todos poderemos colaborar e nos tornarmos agentes na melhoria contínua da comunidade. Os vínculos entre família e escola se fortalecerão e ambos serão grandes aliados no cotidiano escolar e nas redes sociais.
Essa nova escola e essa nova família, muito além do otimismo tecnológico dos Jetsons, vivem em um mundo complexo, e devem se preparar para muitas e rápidas mudanças, entendendo as permanências, como os valores éticos, e dialogando constantemente com toda a comunidade.
A união entre um currículo bem pensado, mas flexível e dinâmico, um corpo administrativo e docente bem preparado, atualizado e reflexivo, uma família parceira e um jovem que percebe significado na educação que experimenta, tem tudo para ser uma receita de sucesso.
* Miguel Thompson (1964-2021) fez graduação em Biologia pela Universidade Mackenzie, mestrado e doutorado pelo Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (USP). Professor de Ensino Básico por 30 anos, foi autor de livros didáticos e de difusão cientifica e consultor PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento). Foi CEO do Instituto Singularidades e ocupou a cadeira de diretor acadêmico da Fundação Santillana Brasil até 2021.