Isabel Marques*
Por que “brincar de dança”?
Todos aqueles que aceitam o convite para, como dizem as crianças, “brincar de dança”, com certeza se remetem a seus corpos. São corpos em movimento que geram danças de todos os tipos, em vários lugares e através dos tempos. São nossos corpos que nos dizem se e quando queremos ou conseguimos algo, com quem vamos ou não brincar ou dançar.
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para a Educação Infantil propõe um campo de experiência chamado Corpo, gestos e movimentos que enfatiza a necessidade de o corpo ser um dos grandes protagonistas dos processos de educação nessa faixa etária. Ou seja, coloca o corpo na centralidade das relações interpessoais e sociais, principalmente para aqueles que ainda não dominam a linguagem verbal. É no corpo e por meio dele que as crianças se expressam, conhecem, dialogam e se relacionam diretamente com o que está ao seu redor.
Ao “brincar de dança”, ao fazer arte, as crianças podem criar e recriar o mundo em que vivem. “Brincar de dança” é um convite a conhecer vários aspectos da vida que o movimento nos possibilita: a ludicidade, as (inter)relações, o prazer, a convivência, as sensações e diferentes percepções de ser e estar, as diferentes maneiras de compreender e de ler o mundo.
Que dança é essa de que vamos brincar?
Quando as crianças nos convidam para “brincar de dança”, elas trazem um entendimento de que a dança é uma brincadeira. Uma brincadeira em que o brinquedo é o próprio corpo. “Brincar de dança” para elas implica se divertir com o corpo, inventar movimentos, explorar objetos, jogar com a música, criar espaços e relações com os outros.
Esse dançar é bem diferente daquele que as mídias e muitas situações sociais nos ensinam, em que a dança é sinônimo de coreografia, ou seja, de uma sequência combinada de passos que deve ser decorada e reproduzida com um acompanhamento musical. A dança, se aprendida e ensinada como uma brincadeira, é uma experiência corporal que nos permite estabelecer outras conexões com o mundo: conexões sensíveis, afetivas, simbólicas e imaginativas.
No entanto, não podemos ser ingênuos em acreditar que, por ser uma brincadeira gostosa, as crianças já dançam “naturalmente”. Por mais que as crianças já carreguem conhecimentos sobre seus corpos em movimento, a dança, por ser uma linguagem artística, é também construída, aprendida e desenvolvida ao longo da vida. E, por isso, é importante que ela seja um campo de experiência na escola. As danças das crianças, assim como as dos adultos, são expressões dos corpos que são constituídos e construídos a partir de experiências e relações com os outros e com o meio. Como assim?
Em primeiro lugar, precisamos entender que nossos corpos não são somente nosso “habitat”, ou um “instrumento” para nos ajudar a dançar. Como diz Don Johnson, estudioso norte-americano, não temos um corpo (algo à parte), nós somos nossos corpos; nossos corpos somos nós: seres únicos e, ao mesmo tempo, coletivos e sociais.
Ao longo da vida, nossas experiências vão construindo a corporeidade, ou seja, nosso corpo nas relações com o mundo. A forma como fomos embalados na Primeira Infância, o tamanho do berço, os sons do ambiente, as texturas do piso onde engatinhamos nos ensinam, por exemplo, a como receber um toque, os limites de expansão do nosso corpo e a atenção auditiva e tátil ao meio, respectivamente. Do mesmo modo, as atividades corporais que experienciamos – brincadeiras, jogos, fazeres artísticos – vão construindo nossos corpos e fazendo com que nos relacionemos com a vida de formas diferentes. A criança que brincou com panos de seda conheceu no corpo a leveza aprendendo, provavelmente, movimentos leves e formas de relação carinhosas com os outros; aquela que dançou muitas vezes em roda, provavelmente não se sentirá desconfortável em uma reunião com muitas pessoas, e assim por diante.
Não podemos nos esquecer, claro, o quanto nossas casas (grandes, pequenas, sobrados, apartamentos, condomínios, com ou sem área de lazer etc.), os prédios de nossas escolas (tamanho das salas, acesso aos brinquedos, parque, escadas etc.), os centros de lazer, os consultórios etc., ou seja, os modelos arquitetônicos dos lugares onde estivemos também moldam nossos corpos: lugares ensinam nossos corpos sobre amplitudes e qualidades de movimento, ações corporais e relações com os outros, pois permitem ou não, incentivam ou não, motivam ou não movimentos diferentes.
As crianças pequenas que conhecem, saboreiam e aprendem as múltiplas possibilidades do corpo em movimento em diferentes tempos e espaços também terão múltiplas possibilidades de criarem suas próprias danças brincantes e poderão, sem dúvida, com essas danças, aprender formas singulares de ser e estar na vida.
Quem “brinca de dança”?
O convite à dança não pode ser unilateral: a criança dança e o adulto assiste, ou vice-versa. Pais, professores, cuidadores, gestores – adultos em geral – são muito mais do que estimuladores e mediadores de corpos, movimentos e danças na escola. A dança que educa é uma arte do coletivo, do estar junto, do compartilhar, é uma brincadeira para todos.
Por essa razão, o papel dos adultos é muito importante: brincando, movendo-se e dançando com as crianças – e engajando-se com escuta ao que elas têm a dançar – adultos podem criar com as crianças elos de cumplicidade, ética e conhecimento indispensáveis não somente para o futuro das crianças, mas para o presente de ambos.
Nos processos de ensino e aprendizagem do corpo em movimento que se transforma em danças, adultos são propositores, mas, primordialmente, interlocutores, focalizadores de propostas que geram as danças de cada uma das crianças. Essas danças contam suas histórias corporais pessoais, trazem experiências de cada grupo sociocultural a que pertencem. Se somos tão diferentes, por que nossas danças devem ser iguais, não é mesmo?
Em suma, corpos adultos devem propor jogos de dançar com seus próprios corpos, perguntando e respondendo às necessidades, propostas, ousadias e brincadeiras que as próprias crianças nos propõem. Nunca nos esqueçamos também que, além do papel primordial dos adultos como interlocutores das danças das crianças, elas também aprendem a “brincar de dança” umas com as outras, e às vezes isso é bem mais divertido!
Para que pais, professores, cuidadores e gestores possam de fato se engajar corporalmente nas e com as danças das crianças, é interessante que conheçam mais danças, frequentem espetáculos, assistam a vídeos, conheçam seus corpos e… dancem! O risco do adulto é também um aprendizado para as crianças.
Antes, durante e depois de “brincar de dança”
Existem propostas de dançar – na verdade as mais convencionais e as que a maioria das pessoas conhecem – que mostram às crianças que aprender dança é reproduzir de forma silenciosa movimentos criados por adultos: passos de um coreógrafo de fora, de um clip do YouTube, de um CD de cantor(a) famoso(a) ou de um adulto ou irmão(ã) mais “sabido(a)”. Nesses casos, ninguém na verdade “brinca de dança”. Trata-se apenas de corresponder às expectativas de pais, professores, parentes, e amigos da comunidade que possuem um conceito de dança atrelado às mídias e, por que não dizer, ao senso comum.
A brincadeira de dança é, de fato, um direito das crianças, pois a ludicidade, a experimentação, a participação e a convivência devem fazer parte da educação desde os primeiros meses. Ao propormos às crianças danças brincadas que possibilitem a criação, a autoria e o protagonismo estaremos também propondo que trabalhem diretamente com suas corporeidades, ou seja, com suas vidas, vivências, experiências e histórias.
O “brincar de dança” pelas crianças permitirá que elas conheçam seus corpos em diferentes tempos e espaços. Dança é arte e traz às experiências corporais das crianças uma diversidade e quantidade de aprendizados que não estão presentes de outras formas no cotidiano.
Por exemplo, seria interessante conhecer as práticas e os interesses corporais das crianças em situação escolar, em suas casas e em outros ambientes que frequentam. Valeria a pena prestar mais atenção ao ambiente onde moram, com quem vivem, quais são e como fazem seus trajetos de casa para a escola e para outros lugares: a pé, de carro, de ônibus? Seria interessante também observar como são e estão seus corpos em diferentes espaços com pessoas diferentes, a partir de vários estímulos sonoros e táteis. Nesse sentido, um diálogo com professores é bem interessante para conhecer – e comparar, se for o caso – como as crianças experienciam seus corpos em casa e na escola, na rua e nos parques, na casa dos parentes ou dos amigos.
Propostas de dança seriam bem mais significativas se também propusessem, dançando, que as crianças sentissem, percebessem, conhecessem seus corpos e os corpos dos outros. Esse conhecimento pode estar relacionado às sensações e percepções do batimento cardíaco ao correr, à temperatura do corpo antes e depois de dançar, ao domínio do movimento articulado, ao tônus muscular ao fazer força e assim por diante. Esses conhecimentos do corpo ainda não são dança, mas com eles a dança fica mais plena, mas integral e mais prazerosa.
Seria importante conhecer ideias, concepções, imagens, lembranças, desejos e sonhos que as crianças têm em relação ao dançar. A dança, enquanto arte, não é só concreta e corporal; ela também leva consigo mundos de desejos, sonhos e imaginação. Aquilo que imaginamos afeta o que vivemos e o que percebemos e vice-versa. É por essa razão que é extremamente importante conhecermos os mundos imaginários dos corpos e das danças das crianças antes, durante e depois de brincarmos de dança.
Como se “brinca de dança”?
Há várias formas de propor às crianças que brinquem com seus corpos inventando suas danças com/a partir de suas histórias corporais e, ainda, deixar espaços para que criem e recriem aquilo que foi proposto. Com isso, as crianças poderão experienciar seus corpos em movimento protagonizando as danças e aprendendo que a arte é uma forma de conhecer e de estabelecer relações com a vida.
A primeira delas é trabalhar com os próprios elementos que estruturam a linguagem da dança. Foi Rudolf Laban, coreógrafo europeu, que nos trouxe essa ideia já no início do século XX: as danças são composições de elementos do espaço, do corpo, das qualidades de movimento e dos relacionamentos. Por exemplo, como seria uma dança somente no chão? Que movimentos o cotovelo pode fazer? Que formas os corpos constroem no espaço? Como é dançar fazendo movimentos lentos com uma música rápida?
Outra proposta geradora de dança é sugerir que as crianças observem movimentos do cotidiano (carros, liquidificador, esguicho, pessoas) e percebam: que movimentos eles fazem e por quê; quando e onde os movimentos são feitos; como é possível traduzir esses movimentos no corpo e como dançá-los. Essas observações podem se estender para observação e apreciação da própria dança, da dança como arte; podemos mostrar vídeos, oferecer imagens, ir ao teatro assistir a um espetáculo.
O meio ambiente também é um grande gerador de dança, pois oferece diferentes espaços para que os corpos possam se movimentar, expandir, recolher e locomover. Dançar em espaços abertos e espaços fechados, em salas pequenas e salas grandes, embaixo da mesa, em cima da escada… acender e apagar a luz da sala, cobrir o chão com tapete macio. Espaços são construídos pela dança ao mesmo tempo que motivam a criação de movimentos, transformando-os em danças.
Do mesmo modo, o uso de objetos – mesas, cadeiras, bambolês, panos, bolas, máscaras – é um excelente mediador nos processos de criação em dança. Cada objeto traz uma qualidade de movimento diferente ao corpo e permite a ele campos de experiência diferentes. Do mesmo modo, as relações com as pessoas, por meio do toque ou do olhar, podem gerar danças únicas, próprias de cada um, próprias de um grupo, de suas histórias passadas, presentes e futuras. A dança é, ao mesmo tempo, de cada um e para todos.
Acima de tudo, as danças devem permitir e valorizar escolhas, olhares e atitudes diferentes para os corpos, para os outros, para o mundo. Desta forma, não estaremos educando corpos dóceis, apáticos, submissos, mas sim corpos – pessoas, portanto – lúdicos, relacionais, críticos: conscientes e transformadores. Não dançamos para transformar o mundo, é dançando que isso acontece!
Referências bibliográficas
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RENGEL, Lenira. Os temas de movimento de Rudolf Laban. São Paulo: Annablume, 2008.
*Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Dança pelo Laban Centre, em Londres, e licenciada em Pedagogia pela USP. Diretora fundadora do Caleidos Cia. de Dança e do Instituto Caleidos, em São Paulo (SP). Foi assessora da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo nas gestões Paulo Freire e Fernando Haddad; do Ministério da Educação (MEC) e da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Autora dos livros Dançando na escola (Cortez, 2003);Linguagem da dança: arte e ensino (Digitexto, 2010), finalista do Prêmio Jabuti 2011; Ensino de dança hoje (Cortez, 2011); Interações: criança, dança, escola (Blucher, 2012); e Arte em questões (Cortez, 2014), finalista do Prêmio Jabuti 2013. Premiada pela Lei de Fomento à Dança para a Cidade de São Paulo, pelo Programa de Ação Cultural do Estado de São Paulo e pelo Prêmio Funarte de Dança Klauss Vianna.