Maria Teresa V. de Carvalho*
Tudo acontece nos primeiros anos de vida. Aquele bebê que nasce enroladinho e de olhos fechados desabrocha e “cai na vida” tornando-se um ser que anda, corre, fala, pensa, se relaciona, faz escolhas e se faz presente ocupando um lugar próprio no mundo. É consenso universal a ideia de que na Primeira Infância se constrói o alicerce do humano, a base onde serão fixadas todas as estruturas para a vida. Com certeza é a base de tudo, como uma casa que, se bem estruturada suportará o que pode vir: móveis e decorações, moradores e vizinhos, tempestades, bons e maus tempos. Enfim, aquilo que é bem construído poderá suportar crescimento e transformações.
Nós, adultos, passamos por transformações ao longo da vida de acordo com nossas experiências e escolhas. A cada novo passo, ocorre uma modificação no modo de ser e se colocar no mundo, ainda que às vezes pouco perceptível: uma mudança de cidade, a aquisição de conhecimentos que determinam uma profissão, a convivência e o estabelecimento de vínculos duradouros com algumas pessoas, as diferentes funções sociais que se conquistam, as intercorrências com saúde e modo de vida… São essas experiências de vida que determinam nossas características e maneira de viver. O mesmo ocorre com os bebês e as crianças bem pequenas. Nestes casos, porém, devemos antes de pensar em transformações, nos ater ao tempo de formação, ao tempo de tornar-se um indivíduo humano. Com eles tudo é novo, quase tudo é “a primeira vez que está acontecendo”. Os alicerces da casa ainda estão sendo construídos e formados.
O cérebro e todo o sistema nervoso central se formam nesse início da vida, ou, melhor dizendo, desde a gestação. A neurociência, ciência interdisciplinar que estuda o desenvolvimento e o funcionamento desse sistema, afirma que existe uma relação direta entre as primeiras experiências e o desenvolvimento cerebral. Iole da Cunha (2001), pediatra e especialista em neonatologia, no texto A revolução dos bebês, aponta que “o desenvolvimento do cérebro depende de uma complexa interação entre os genes com os quais se nasce e as primeiras experiências que se tem. As primeiras experiências têm um impacto decisivo na arquitetura do cérebro e na natureza e qualidade da capacidade do adulto”.
Devemos entender por nutrição não apenas o alimento propriamente dito, mas também todas as ações de cuidado e os tipos de estímulo aos quais as crianças serão submetidas.
Pode-se dizer que as relações iniciais com os primeiros cuidadores (mãe, pai ou outra pessoa que se ocupa integralmente do bebê) são determinantes nesse processo de formação da criança e, por isso, devem ser relações de qualidade, baseadas tanto em atenção às necessidades do corpo e do organismo quanto em vínculos afetivos consistentes, comunicação, segurança e ainda oferta de boas experiências para apresentar-lhe o mundo. Trata-se aqui de olho no olho, de voz ritmada que acalanta e narra uma história, de sustentação corporal, de acolhimento às sensações e sentimentos, de presença permanente e significativa que garante a continuidade dos cuidados, de emoções que moldam essa relação e ainda de brincadeiras compartilhadas.
Na verdade, a principal história que se narra à criança ao longo de seu desenvolvimento é a sua própria história, construída nessa relação. Não estamos com a criança o tempo todo, desde o momento de trocar uma fralda, de conversar dentro do carro a caminho da escola ou ainda contando uma história quando ela vai se deitar? Falamos quem é ela, o que está acontecendo com seu corpo, quem são as pessoas ao redor, o que faz o barulho além de assustar… todos trechos de uma história que se constrói e que situa a criança na complexidade do mundo. E, assim, vamos nos adequando a cada etapa de vida dessa criança. Não é à toa que nos encantamos com os olhinhos que brilham de uma criança enquanto presta atenção na voz e melodia do adulto; é porque esse olhar que se sustenta na curiosidade, é como uma antena que capta todos os sinais transmitidos nas relações cotidianas. Um “radar” que usa não apenas os olhos, mas todos os sentidos como instrumentos: o bebê se guia pela visão, audição, olfato, paladar e tato. Os sentidos são o seu radar, a sua forma de perceber e compreender o mundo.
Tem muita coisa em jogo nessa interação. É preciso que os adultos estejam inteiros, que estejam disponíveis para acompanhar cada passo desse caminho inicial e que consigam tanto decodificar os sinais que chegam ao radar quanto os que são transmitidos por eles. Aprender a comunicar-se para além das palavras, mas pelos gestos, sons e balbucios, expressões, mudanças de comportamento. As crianças pequenas são conectadas e comunicativas.
Voltemos à primeira construção, a do cérebro e seu sistema. Iole da Cunha (2001), ainda no texto citado anteriormente, afirma que “a emoção do sentimentode-estar-com-em-segurança, sentido pelo bebê em interação com o cuidador, é fator intrínseco e imprescindível para a saúde mental, conquanto determinante da construção dos caminhos neurais adequados”. Essa emoção é “essencial para a formação da quantidade e qualidade de células neurais próprias para cada tempo específico da plasticidade cerebral”. Ou seja, o que e como se faz com as crianças está diretamente ligado à constituição de um corpo e uma mente que se desenvolvem, fazendo marcas em seu futuro.
Talvez os nossos avós, quando diziam “é de pequeno que se torce o pepino” ao se referirem à formação moral das crianças, não soubessem que esse dito popular pode se referir também à importância fundamental das ações e dos movimentos de diversas instâncias exercidos sobre esses pequenos, inclusive para a maturação e o desenvolvimento do seu organismo. Se os primeiros anos são o tempo de constituição da criança, é preciso vê-la de modo integral, em seus aspectos físico, psíquico, cognitivo, social e cultural. Em outras palavras, uma criança é constituída de corpo, de emoções e sentimentos, de ideias e conhecimento, de vínculos e relações interpessoais, da história de uma família, uma comunidade e um povo. Cada um desses aspectos remete a um vasto campo de experiências.
O desenvolvimento físico supõe o cuidado com o corpo, a alimentação, a higiene, o sono, a possibilidade de coordenar os movimentos pelo espaço, a proteção. É bem sabido que um bebê desnutrido pode ser prejudicado por toda a sua vida, tendo dificuldades de diversas ordens, inclusive de aprendizagem. Dormir bem, ser aquecido no frio, ser protegido de estímulos muito fortes, poder se movimentar pelo espaço, ser mantido minimamente limpo e confortável são experiências fundamentais para garantir o sucesso desse processo.
O desenvolvimento emocional remete às interações afetivas, à vivência dos diferentes sentimentos e emoções, a poder expressar alegrias, tristezas, raivas e medos e, acima de tudo, a ter a experiência da segurança transmitida pelo cuidador que deve existir para o bebê como um porto seguro. Segurança é palavra-chave nesse percurso, o que não significa proteger ao ponto de evitar que a criança faça suas experimentações pelo mundo. Segurança significa fazer a criança confiar que sempre vai ter alguém por perto, olhando e zelando por ela para resolver todos os seus problemas.
Quem nunca viu um bebê começando a engatinhar que sai desenfreado pela sala, mas que de repente para, dá uma olhadinha para trás e se o adulto está olhando ele continua a desbravar o espaço, mas se não tem ninguém ele desiste? É disso que estamos falando aqui, de a criança poder sentir-se segura pela presença de quem cuida dela. O mesmo acontece com as crianças maiores; por exemplo, quando fazem birras, elas desafiam o adulto, desencadeiam cenas de tensão e embate, mas conseguem se acalmar na presença do mesmo adulto, principalmente quando se certificam de que ele não desistiu, que está ali para impor os limites necessários e para acolher o cansaço no final do embate.
O desenvolvimento cognitivo diz respeito ao contato com as informações do mundo físico e cultural, todas as experiências de aprender; desde a noção do próprio corpo até a possibilidade de falar mais de um idioma, inventar histórias, fazer perguntas complexas sobre o funcionamento das coisas, inclusive sobre a natureza das relações interpessoais. Aliás, se tem algo que é da natureza da primeira infância é o querer saber sobre as coisas do mundo: sua origem, seu funcionamento, seu destino. Há até uma música para crianças da Palavra Cantada que trata disso:
Toda criança quer
[…]
E todo mundo quer
E todo mundo quer saber
De onde vem
Pra onde vai
Como é que entra
Como é que sai
Por que é que sobe
Por que é que cai
Pois todo mundo quer…
Palavra cantada. Toda criança quer. Disponível em: < http://palavracantada.com.br/musica/toda-crianca-quer/>. Acesso em: out. 2018.
Desde bem pequenos, os bebês são verdadeiros cientistas, ocupados em investigar tudo ao seu redor. Esse comportamento de constante pesquisa é extremamente útil em todas as fases da vida, pois, quanto mais problemas solucionar, mais facilidade terá para enfrentar os desafios inerentes à vida de qualquer adulto. Chamamos aqui de “problemas a solucionar” os pequenos desafios cotidianos, como descobrir o modo de encaixar uma bolinha em um cubinho, fazer movimentos para alcançar um brinquedo, compreender o que significam as diferentes expressões faciais do adulto enquanto conversa ou mesmo descobrir como chamar a atenção para seus desejos e necessidades.
Os desenvolvimentos social e cultural remetem às experiências de interação com as pessoas que pertencem aos diferentes grupos com os quais as crianças vão conviver, tais como a família, a creche, a escola, a casa dos amigos, as festas anuais de sua comunidade. Viver em sociedade pressupõe se relacionar com pessoas, viver em grupo, aprender as regras do coletivo. Por sua vez, esses diferentes grupos têm histórias e produções próprias: rituais, tradições, hábitos, costumes, música, arte, mitos e lendas.
Nesse sentido, podemos nos apropriar aqui do conceito de desenvolvimento como uma tarefa “conjunta e recíproca”, ou seja, que se dá na interação das diferentes experiências e seus meios. Impossível isolar algum aspecto neste processo. Falar de corpo que se desenvolve, que cresce e adquire habilidades complexas é falar do organismo que regula esse corpo e seus diferentes sistemas fisiológicos. É falar também de linguagem, de interação desse corpo e organismo com uma cultura, com códigos sociais, com afetos e ações significativas.
O corpo não se desenvolve sozinho sob a ação do tempo. Precisa ser nutrido, mantido em conforto, protegido e também simbolizado, operação esta que se dá na linguagem e na relação de proximidade entre a criança e seus cuidadores. Para que haja nutrição é preciso um organismo que a processe, mas nada disso acontece sem a interação humana do bebê com um adulto, que além de lhe oferecer o alimento necessário e adequado e de controlar as ações fisiológicas, fala e olha para essa criança dando sentido a cada um desses aspectos.
O meio natural e simbólico faz exigências à criança, impulsionando o desenvolvimento de suas potencialidades; e ela, por sua vez, faz exigência a esse meio para que receba estímulos de qualidade, experiências significativas e consistentes. Em outras palavras, os bebês precisam se adaptar ao mundo em que chegaram, porém não fazem isso passivamente, mas de modo ativo e competente. Outro ditado popular diria que “quem não chora não mama”. Os bebês convocam os adultos a se ocuparem deles, a oferecerem novidades para suas descobertas e solução para suas necessidades. No processo de desenvolver-se integralmente, muitos encontros, de diferentes naturezas, serão estabelecidos, resultando em um sujeito único e singular.
Desta forma, é preciso retomar a ideia de que cada uma das experiências vividas terá sua parte na escrita dessa história, começando pelas experiências com o outro que cuida e se ocupa dessa criança. É preciso muitos cuidados nesse caminho que parte da extrema dependência para a independência e autonomia. O adulto oferece a voz, o olhar, o corpo que segura e acolhe, oferece as palavras que consolam, que explicam, que descortinam horizontes, inserindo a criança no mundo e suas infinitas possibilidades. À criança cabe viver intensamente todas essas experiências que lhe são oferecidas: ser curiosa, investigar, conhecer, vincular-se e, mais do que tudo, BRINCAR!
Referência bibliográfica
CUNHA, Iole da. “A revolução dos bebês – aspectos de como as emoções esculpem o cérebro e geram os comportamentos no período pré e perinatal”. Trabalho publicado na Revista Psicanalítica da SPRJ, vol. II n. 1 – 2001, p. 10.Maria Teresa V. de Carvalho
*Psicóloga, psicanalista, mestre em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo (USP). Trabalhou em creches e outras instituições de Educação Infantil em diferentes funções: diretora, coordenadora pedagógica e psicóloga. Atualmente, além de atendimento em clínica particular, trabalha com formação de professores e gestores de Educação Infantil. É professora do curso de especialização em Educação Infantil do Instituto Superior de Educação Vera Cruz e formadora e consultora do Instituto Avisa Lá. É coautora do livro Interações: ser professor de bebês – cuidar, educar e brincar, uma única ação (Blucher, 2012). Foi membro da diretoria da Associação Brasileira de Estudos sobre o Bebê (Abebe), na gestão 2015-2018.