Daniel Munduruku*
“Silenciar não apenas a boca, mas, sobretudo, a mente, para que ela possa ouvir os sons da natureza. O silêncio da boca é o mais fácil, porém é preciso saber silenciar a mente, porque só assim se pode estar inteiro na atividade realizada.”
As sociedades indígenas costumam criar suas crianças e jovens em um ambiente que lhes permite viver plenamente cada fase da vida. Fazem isso por entender que cada momento vivido precisa ser bem aproveitado, para que as crianças e os jovens não se sintam frustrados posteriormente por não terem aproveitado uma fase anterior.
Por que esses povos agem assim? Porque essas sociedades preparam seus membros para viver o presente, e acreditam que cada fase da vida tem tempo para começar e terminar. Dessa maneira, para que todos tenham a oportunidade de viver uma vida plena, nenhuma fase da vida deve ser prolongada.
É por isso que as sociedades indígenas tradicionalmente realizam os chamados ritos de passagem, que são celebrações, eventos que marcam rupturas no tempo e lembram o momento de mudança de uma fase da vida para outra.
No Brasil há 305 povos indígenas e 274 línguas indígenas (IBGE, 2010). Cada cultura é um universo particular. Cada povo tem seu próprio estilo de vida, e forma seus jovens utilizando sua memória ancestral, acreditando que ela sempre será a melhor maneira de torná-los seres humanos completos.
Entre os Munduruku, por exemplo, o indivíduo é criança do dia em que nasce até os 9 anos de idade. Nesse momento, ocorre uma primeira ruptura.
A fase seguinte se estende até os 15 anos. Durante o período que vai dos 9 aos 15 anos, os meninos entram em uma fase de preparação, em que precisam assimilar os princípios básicos que regem a vida em sociedade: aprenderão a conhecer o ambiente onde se movimentam para conseguir alimento; treinarão seus corpos para enfrentar as agruras da natureza, realizando longas caminhadas, descidas e subidas ao longo dos rios; e desenvolverão o uso, com destreza, de arcos e flechas, remos e zarabatanas. À medida que o tempo vai passando, esse treinamento vai ficando mais rígido e outras tarefas vão sendo oferecidas a eles, de modo que possam praticar o que aprenderam.
Também é nesse período que os meninos começam a ouvir histórias das grandes caçadas. Antes de enfrentarem os perigos da floresta, serão alimentados com essas narrativas que lembram como a tradição vem sendo praticada desde sempre, com o intuito de manter o equilíbrio pessoal e social.
Silenciar para sobreviver
Desde a primeira fase se aprende que fazer silêncio é mais do que uma obrigação, trata-se de uma necessidade. Entre os 9 e 15 anos de idade começa-se a treinar o silêncio da mente. Silenciar não apenas a boca, mas, sobretudo, a mente, para que ela possa ouvir os sons da natureza. O silêncio da boca é o mais fácil, porém é preciso saber silenciar a mente, porque só assim se pode estar inteiro na atividade realizada. Na floresta, todo e qualquer barulho pode ser um sinal de vida ou de morte. Estar com todos os sentidos atentos ao que está acontecendo é garantia de sobrevivência. Daí a importância de silenciar a mente, pois ela faz com que nossa atenção esteja voltada plenamente ao que se está fazendo.
Meninas em transição
As meninas das sociedades indígenas também contam com seu momento de ruptura. Diferentemente dos meninos, o desenvolvimento corporal delas é que determina o momento para essa “virada”, e não a chegada aos 9 anos. Embora desde muito novas elas já comecem a auxiliar em casa, realizando pequenos afazeres domésticos, elas vão sendo orientadas a preparar seu corpo para a grande tarefa que lhes espera à frente: a maternidade. Quando passam pela menarca, já adquiriram conhecimento expressivo do próprio corpo e podem se preparar para o casamento.
É comum, em algumas culturas, o isolamento das meninas quando estão vivendo essa transição. Elas passam a conviver apenas entre si e com outras mulheres que já passaram pela mesma situação. Durante esse período, são ensinadas a cuidar do próprio corpo; conhecem os remédios para engravidar ou evitar a gravidez; ouvem conselhos das mais velhas; aprendem a ouvir e a falar sobre si mesmas e sobre a vida. Claro que esse é um processo que vem acontecendo desde a infância, mas é nesse momento que tudo faz mais sentido: elas estão deixando de ser meninas e tornando-se mulheres. Quando termina o período de isolamento, já estão prontas para o casamento.
Meninos em transição
Quando completam sua formação inicial, os rapazes precisam provar que merecem virar homens. Esses ritos de passagem variam de povo para povo, mas quase todos eles envolvem muita dor e sofrimento. Os rapazes precisam mostrar habilidades de superação, provar que são capazes de sentir dor, de enfrentar perigos, demonstrar conhecimentos. Alguns povos os obrigam a colocar as mãos em uma luva de palha toda recheada de famintas tanajuras — formigas de fogo; é o caso do povo Saterê-Mawé, do Amazonas. Há povos que colocam seus meninos para dançar na água durante um mês inteiro, antes de lhes furarem as orelhas, caso dos Xavante, do Mato Grosso; há outros que isolam seus garotos na floresta durante muitos dias para que mostrem sua capacidade de sobrevivência, caso dos Munduruku; e assim por diante. Depois que passam por essas provas, os meninos ganham status de adultos e já podem se casar.
Vida de adulto para envelhecer com dignidade
Se há algo que um Munduruku deseja é tornar-se velho. Tudo o que se ensina aos jovens, até eles se tornarem adultos, contribui para que amadureçam como homens e mulheres plenos e preparados para chegar à última etapa da vida, que é a velhice. Minha gente não se envergonha de viver essa fase, porque sabe que cabe aos velhos formar o espírito dos jovens. Eles são os sabedores da tradição e disponibilizam esses saberes para que os mais jovens não se esqueçam de onde vieram. Têm, portanto, papel importante na construção do sentimento de pertencimento, necessário para que a comunidade mantenha sua integridade e seu espírito coletivo.
*Escritor indígena, graduado em Filosofia e licenciado em História e Psicologia. Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-doutor em Linguística pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Comendador da Ordem do Mérito Cultural da Presidência da República desde 2008. Diretor-presidente do Instituto UKA – Casa dos Saberes Ancestrais. Autor de mais de 50 livros para crianças e jovens, recebeu diversos prêmios no Brasil e no exterior, entre eles o Prêmio Jabuti, em 2017, na categoria juvenil. Muitos de seus livros receberam o selo Altamente Recomendável outorgado pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ).