Silvana Augusto*
Criança tem que brincar! Isso é um consenso inquestionável. Ninguém nega a necessidade que os pequenos têm de aproveitar bem o tempo da infância, de se divertir com atividades livres que não exijam desempenho ou resultados inflexíveis. Criança brincando é sinal de saúde, de que tudo está indo bem em seu desenvolvimento. Por isso, enquanto está na creche ou nos centros de convivência infantil, ela precisa ter todas as condições para brincar bastante, aprender a se relacionar com os outros, conversar e fazer amigos.
Mas quando a criança vai para a escola de Educação Infantil, a primeira etapa da Educação Básica no Brasil, as expectativas mudam radicalmente e os pais começam a se preocupar porque, então, as coisas começam a ficar mais “sérias”. Por que será que a entrada das crianças na escola básica causa tanta apreensão e insegurança? O que muda em relação à fase anterior? Que expectativas os pais alimentam para o início dessa jornada? O que é “sério” na Educação Infantil? Muitos pais dizem: “Meu filho vai à escola todos os dias, mas ele só brinca.”, “Não está na hora de ter as primeiras lições, de aprender os nomes das letras?”, “Quando as crianças devem começar a escrever? Em que momento precisam aprender o alfabeto? Posso ajudá-las em casa?”.
Para começar, é importante saber que brincar, para uma criança pequena, é algo muito sério e decisivo no seu desenvolvimento. Brincar é a principal atividade dessa fase da vida e é a linguagem pela qual a criança poderá compreender e elaborar o mundo, os papéis sociais e as relações entre as pessoas. A brincadeira, sobretudo a de faz de conta, tem tudo a ver com o aprendizado da leitura e da escrita.
Na etapa da Educação Infantil ocorrem importantes avanços no desenvolvimento da criança. Um deles é o desenvolvimento da capacidade de representação. Um bebê atua no mundo por meio de ações involuntárias num primeiro momento e, depois, por meio da imitação dos gestos dos adultos cuidadores, seus pais ou responsáveis. Ele não é, ainda, capaz de fazer ou produzir algo que represente uma outra coisa, um objeto ou uma pessoa que não está imediatamente presente em seu campo de visão. Essa capacidade de representar é desenvolvida por meio das experiências pelas quais as crianças passam, inclusive a de brincar.
A brincadeira permite à criança projetar-se para além de sua própria identidade, externalizar ideias, pensamentos, palavras que representam os objetos ausentes, as coisas, as pessoas e os sentimentos. Assim como a brincadeira, também o desenho e, por fim, a escrita são linguagens que representam o mundo. Brincar, desenhar e escrever não são atividades conflitantes, mas sim complementares no processo de desenvolvimento da criança. A criança que aprende a escrever é a mesma que produz enredos nas brincadeiras de papéis, que inventa personagens e cenários nos desenhos, quer dizer, que cria e projeta ideias.
O exemplo a seguir ilustra a complexidade da atividade infantil.
Aos 3 anos, Ana Clara participou, em sua escola, da brincadeira de caça ao tesouro na Páscoa. Ela ficou encantada com a sabedoria de sua professora que, junto ao grupo de crianças, decifrava informações preciosas escondidas no parque, nas pistas que foram espalhadas. Não fossem tais informações, não seria possível obter aquela cesta de chocolates que fez a alegria de todos naquela tarde. Isso marcou o imaginário da pequena de tal forma que, em casa, ela se lembrou da experiência vivida e convidou a mãe para brincar. “Mãe, disse ela, eu deixei pistas no seu quarto!”.
Naquele dia a menina foi fisgada pela escrita. Ela entendeu esse tesouro que só os adultos têm, essa mágica que permite saber das coisas. As pistas de Ana Clara já contêm muito saber: aos 3 anos, ela já sabe que a escrita se organiza em linhas, que tem certa orientação e que, para produzi-las, os adultos usam gestos específicos, diferentes dos que usam para desenhar. Ela também sabe que pode conter informações, desejos, ideias, intenções comunicativas. A curiosidade incessante acompanhou a jornada da pequena na escola que, além dessa brincadeira, ofereceu muitas outras oportunidades para presenciar os usos sociais da linguagem.
Essa mesma menina, anos depois, está brincando de faz de conta. Ela inventa uma porta de papelão para separar o espaço interno e externo de sua casinha. Parece que isso não fica claro para os adultos e para as outras crianças que insistem em passar por ali. Esse é um problema na brincadeira porque é também um problema na vida real, afinal, a regra social nos obriga a sempre bater à porta antes de entrar. Como controlar o comportamento dos demais? Ana Clara já sabe como: basta sinalizar “Bata na porta, por favor!”.
O exemplo dessa pequena de apenas 5 anos deixa claro que brincar na Educação Infantil não é perda de tempo, e sim um investimento que tem como objetivo ampliar a capacidade de representação e, por fim, melhorar a performance expressiva da criança em diferentes linguagens, inclusive na escrita.
É claro que os nomes das letras é um conhecimento necessário. Sem elas, Ana Clara não poderia escrever. No entanto, ela tem outros conhecimentos anteriores mais importantes que permitiram a ela ter essa ideia, tão adequada, de recorrer à escrita para intervir no mundo e alterar uma realidade. De nada adianta saber os nomes das letras sem saber o que fazer com elas, sem desejar, de fato, possuí-las. Por que escrevemos? Para quem e em que situações? Que sentidos e significados essas escritas carregam? Como podem nos transformar ou alterar nossa realidade? Esses são conhecimentos mais abrangentes do que os nomes das letras.
Os sentidos não estão nas letras, mas nas histórias que povoam o imaginário das crianças com seus heróis, princesas e mundos encantados onde se pode tudo. Estão nas poesias que brincam com as palavras e com as imagens. Nos nomes das pessoas e das coisas. Estão nos textos e nas práticas sociais de ler e de escrever que são apresentadas para as crianças desde cedo, num trabalho intenso de letramento que se inicia antes mesmo de se apresentar o alfabeto. E é por isso que a leitura é uma das principais atividades de uma escola de Educação Infantil séria.
Embora seus filhos não estejam fazendo lições com a base alfabética desde os 4 anos, aprendendo a desenhar e a nomear as letras, isso não significa que a escola não esteja ensinando. As atividades de leitura, por exemplo, são o primeiro passo e o chamariz para a entrada no mundo da escrita.
O contato com a leitura cria boas condições para que as crianças aprendam determinados usos e funções da escrita, para que percebam certas regularidades nas formas de se expressar por escrito e para que alimentem o desejo de aprender a ler e a escrever. A criança que entra nesse mundo imaginário e presencia os atos do adulto leitor observa uma das principais características da escrita: a sua estabilidade. Qualquer que seja o leitor ou seu tempo histórico, as mesmas palavras serão pronunciadas sob o mesmo conjunto de letras. Como isso acontece? E como se “adivinha” o que está escrito? É esse mistério que as crianças descobrem na escola e, depois, passam a desejar desvendar para também se tornarem leitoras e participarem de igual para igual desse mundo.
Em vez de insistir nos exercícios de cópia e na memorização dos nomes das letras, os pais efetivamente contribuem muito mais com o processo de aprendizado de seus filhos quando se oferecem como leitores para eles, quando compartilham momentos prazerosos de leitura e explicitam seu gosto, seu interesse e sua curiosidade por ler. Criar rituais em casa definindo que, a partir de determinado horário, se desligue a televisão para desfrutar da leitura de histórias, é uma atitude que garante a continuidade do processo de letramento tão investido pela escola de Educação Infantil.
Uma forte expectativa dos pais diz respeito à primeira escrita das crianças: “Quando meu(minha) filho(a) vai escrever o nome?”. Uma das ações mais espontâneas dos pais junto às crianças que iniciam a jornada na Educação Infantil é incentivá-las nessa escrita. De fato, isso tem muito sentido para as crianças, pois o nome constitui parte de sua identidade. O nome representa sua assinatura, uma marca que poderá ser usada para discriminar seus pertences, suas produções, por exemplo, um modo simbólico de se apresentar no mundo. Além disso, a escrita do nome é a principal fonte de informação para as crianças que estão curiosas para aprender a ler e a escrever.
A apropriação da forma escrita do nome próprio ocorre por meio de sucessivas aproximações à escrita convencional, um processo marcado por diferentes modos de escrever que carregam diferentes saberes. A primeira escrita, muitas vezes, pode passar despercebida, confundindo-se com um rabisco qualquer, parecido com tantos outros que a criança produz.
Brincando de escrever como um adulto, imitando seus gestos, a criança vai diferenciando os rabiscos que servem para desenhar daqueles que servem para escrever. Diferente do desenho, esse rabisco já não é mais qualquer rabisco: contém a primeira abstração da escrita e representa, por meio de um sinal diferente dos outros sinais, uma pessoa. Também representa o gesto do adulto que escreve.
O próximo passo na jornada da escrita é atentar-se para reconhecer e discriminar esses diferentes símbolos. O traçado das primeiras letras, principalmente da inicial do nome próprio, é uma presença marcante nessa fase.
Além da inicial, algumas crianças fixam a letra que mais ocorre em seu nome, como, por exemplo, o A de Ana Clara.
Às vezes, esse caminho não é muito linear e algumas escritas estranhas acontecem, incompletas ou espelhadas. Será que isso é sinal de um problema de aprendizagem? É comum que os pais perguntem: “Minha filha está escrevendo o nome dela ao contrário, por quê? Posso corrigir e mostrar o jeito certo de escrever?”.
Antes de corrigir o “erro”, vamos observar o que ela já sabe? Veja o caso de Fabiana, por exemplo.
Fabiana está se apropriando da escrita e, nessa etapa, está copiando as letras na ordem em que elas aparecem. Ela ainda não sabe o sentido da escrita, que é da esquerda para a direita, e como está partindo da direita, espelha, como se as letras fossem imagens. Ela também não sabe que a ordem das letras faz diferença. Mas, como ela ainda vai ler e escrever o nome muitas vezes no cotidiano da escola, terá a oportunidade de, a cada nova escrita, saber um pouco mais sobre as regras desse complexo sistema alfabético, como já aconteceu com Paloma.
Em casa, os pais podem apoiar as crianças, incentivando-as a usar o nome próprio sempre que preciso para identificar seus brinquedos, seus objetos, diferenciando-os dos que pertencem às demais pessoas da família. Também é interessante estimular a identificação dos desenhos, das pinturas e demais produções feitas nas horas livres. Havendo tempo livre, podem brincar de bingo de nomes a partir de tabelas com nomes de todas as pessoas da família, sorteando letras para preenchê-las. São formas que aproximam as crianças da necessidade de escrever e da curiosidade de ler mesmo sem saber ler, procurando desvendar os mistérios dessa linguagem.
Crianças que são convidadas a partir de ações mediadas pela leitura e escrita desde cedo, prestam mais atenção às regularidades da escrita e tomam para si tarefas do cotidiano que ajudam a organizar a vida – a exemplo da agenda diária. Na escola, os professores exploram essas escritas cotidianas dando às crianças a oportunidade de escrever com sentido e significado. Na agenda do dia 7 de agosto de 1998, por exemplo, uma criança registra os afazeres do grupo (entrada, roda, leitura, lanche, parque, duro ou mole, colagem, história, saída), enumerando-os de 1 a 9.
Diante dessas escritas, muitos pais se surpreendem e podem pensar: “Nossa! Está tudo errado! Não é possível ler, estão faltando letras, a professora não vai corrigir?”. Não. A professora não vai corrigir uma criança aos 4 ou 5 anos porque, na verdade, o que ela escreveu não está errado. As escritas da agenda não denotam erros, mas conquistas, pequenos passos dessa criança na direção de compreender todos os símbolos desse universo das representações e como funciona o sistema de escrita. Ela já sabe, a essa altura – e tem apenas 5 anos! –, que para escrever não basta juntar quaisquer letras em qualquer quantidade, mas sim algumas letras, criteriosamente selecionadas no conjunto do alfabeto. É um avanço muito importante, pois, antes disso, ela pensava que para escrever bastava rabiscar o papel, como fez Ana Clara, aos 3 anos. Depois, esteve convencida de que bastava juntar, lado a lado todas as letras que conhecia. Porém, nessa escrita, já bastante avançada, ela demostra saber que as letras que servem para escrever são aquelas que preservam alguma relação com o som, como, por exemplo, PQ para dizer parque. Ou ITA para dizer história, OA para dizer roda. Para essa escrita, ela construiu uma regra: para cada pedaço da palavra, uma letra.
O problema é que, na nossa escrita, em Língua Portuguesa, para cada pedaço usamos duas, às vezes três letras. Como essa criança vai descobrir isso? Na continuidade de sua jornada, comparando essa sua escrita com outras tantas que habitam seu universo. Quem nos ensinou a ver isso foi a estudiosa argentina, doutora em Psicologia, Emília Ferreiro. Seguindo as ideias de Jean Piaget (representante da Psicologia da aprendizagem, da Psicologia cognitivista), Ferreiro pesquisou um amplo número de crianças em suas escritas iniciais e observou que alguns enganos ocorriam com muita frequência, denotando erros sistemáticos. Na verdade, esses erros marcam fases de desenvolvimento de um processo complexo de construção da escrita pela criança.
Portanto, quando seu(sua) filho(a) escreve dessa maneira, é importante que você saiba que ele(a) não está errando e, sim, acertando aos poucos. O seu reconhecimento é importante; em vez de apontar a falta ou corrigir seu(sua) filho(a), é mais eficiente e afetivo para o desenvolvimento ler o que ele escreveu, do modo que ele pode, pois isso faz com que estabeleça relações entre o que se fala e o que se escreve, o que se quer dizer e como dizê-lo.
Por fim, você pode pensar: “Não seria muito mais rápido e mais simples promover o treino da coordenação motora e, depois, ensinar logo os nomes das letras, as sílabas e as regras do sistema, como nas antigas cartilhas pelas quais muitos de nós aprendemos?”. Pode ser mais simples para ensinar, mas não para aprender. As letras e as sílabas isoladamente não têm sentido senão nos textos. E também não geram motivação para escrever. E é por isso que o trabalho de letramento na escola é tão importante.
Uma escola de Educação Infantil séria não cuida apenas de ensinar uma criança a ler e a escrever, mas a se expressar, a desejar e colocar em palavras esse seu desejo. Ensina a tornar-se sujeito autônomo e capaz de interagir no mundo com alegria, inteligência, autonomia e criatividade. Ensina a pensar e a resolver problemas, a lançar ideias e a testá-las, a estabelecer ordem e sentido para o fazer, antes de copiar e treinar habilidades simples. São aprendizados que formam uma pessoa para a vida, não apenas para decodificar a escrita. E isso parece ser tudo o que de fato esperamos: que nossas crianças se desenvolvam bem e sigam felizes a jornada da vida, fazendo suas próprias histórias.
*Possui graduação em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), especialização em Educação a Distância pelo Senac-Rio, mestrado em Teorias do Ensino, Didática e Formação de Professores e doutorado em Linguagem e Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (Feusp). Atualmente é assessora pedagógica para Educação Infantil, professora de cursos de extensão universitária na área de alfabetização, professora e coordenadora pedagógica da pós-graduação Fazeres e Investigações das Crianças de 4 a 6 Anos do Instituto Singularidades, coordenadora de projetos do Instituto Singularidades e coordenadora de projetos do Instituto Avisa Lá. É autora de livros especializados em formação de professores.