Mirela Ramacciotti*
Ainda no útero, os padrões de movimento do bebê determinam as conexões neurais que serão necessárias para a aprendizagem na Primeira Infância (entre 0 e 6 anos). É também no útero que os bebês tomam contato com os contornos melódicos daquela que será sua língua materna. A voz da mãe é o estímulo mais específico que se aprende a discriminar. Conversar e cantar para o bebê – ainda na barriga – auxilia esse período de desenvolvimento. No útero, os sistemas sensorial e motor – e suas conexões neurais – começam a se desenvolver: um processo que só é finalizado no início da nossa terceira década de vida.
Cuidado e carinho começam muito antes do nascimento, assim como a diferenciação: apesar de termos a mesma matriz genética e um desenvolvimento cerebral semelhante, esse desenvolvimento nunca será igual. Nossos giros e sulcos (o que confere a aparência de “dobraduras” ao cérebro) se desenvolvem de forma única em cada um de nós desde a gestação. Nossos cérebros são como nossos rostos: temos olhos, nariz, boca e orelhas, mas cada um com pequenas variações de forma; a combinação entre todos eles é única.
Ao nascer, levamos pouquíssimo tempo para detectar os estímulos sensoriais que nos rodeiam. Conseguimos utilizar habilmente nossa visão, audição, olfato, gustação e tato para guiar nossa percepção, canalizar a atenção e aprender sobre o ambiente que nos cerca. Os bebês humanos apresentam cinco grandes talentos na fase inicial de desenvolvimento:
- Detectar a frequência com que acontecem determinados eventos.
- Usar coincidências para tirar conclusões.
- Distinguir objetos de pessoas – e tratá-los de forma diferenciada.
- Organizar a informação em categorias e pessoas em grupos.
- Saber considerar informações relevantes para focar no que é preciso.
Conforme nos desenvolvemos, física e emocionalmente, nos utilizamos da imitação – ferramenta poderosa para a conexão social que está na base das nossas relações – para apoiar nosso desenvolvimento linguístico e motor. Essa troca social, que alimenta nossa habilidade de imitação e desperta nossos canais sensoriais, é uma das formas que temos para entender o poder que nosso meio dispõe para nos modificar.
Somos moldados pela constante interação de nossa genética (natureza) com o ambiente em que estamos inseridos (meio).
A relação de via dupla entre natureza e ambiente respeita o princípio de Cachinhos Dourados: nem pouca estimulação, nem estimulação demais. Sabendo respeitar os estágios de desenvolvimento pelos quais a criança passa, com constante atenção a boa nutrição, sono e movimentação, trabalha-se o entorno para sedimentar as bases para a expressão de suas potencialidades.
Essas potencialidades não são claramente expressas nem lembradas. Isso porque, antes dos 3 anos, as crianças têm pouca ou nenhuma memória dos acontecimentos da própria vida, o que chamamos de memória episódica. Isso se explica pela falta de conectividade de uma estrutura cerebral essencial para a formação dessas memórias – o hipocampo – com o córtex cerebral.
O cérebro está se formando durante a infância, e este desenvolvimento é hierárquico e sequencial. Há um tempo de maturação para as conexões que vão formar o “álbum de memória” e esse tempo deve ser respeitado e bem cuidado.
O cérebro desenvolve-se de forma estruturalmente complexa, seguindo padrões específicos e precisos. Essa “arquitetura neural” possibilitará aprendizagens ao longo de seus estágios e níveis de organização. O esquema já está programado; então é preciso entender o que fazer para ajudar esse programa a funcionar bem.
Nos primeiros anos de vida a criança tem a maior e mais rápida aprendizagem.
Isto se deve à grande capacidade de adaptação do ser humano a novos ambientes, novos materiais e à eficiente capacidade de resolução de problemas. Como afirmam as autoras do livro The Scientist in the Crib (O cientista no berço), sem tradução em português, “o que vemos no berço é a maior mente que jamais existiu, a máquina de aprendizagem mais poderosa do universo”.
Os bebês fazem um trabalho intenso de sintonização, assimilação e compreensão que tem início ainda na gestação. Ao nascer, os bebês reconhecem a voz de suas mães pela exposição que tiveram durante a fase intrauterina. E também choram nos contornos melódicos da língua de sua mãe. O choro de um bebê brasileiro soará distinto de um choro de um bebê japonês, por exemplo.
Linguagem
Com relação à capacidade de recepção e produção da linguagem, as crianças desenvolvem, três características humanas essenciais: a sensibilidade aos sons e combinações vocálicas particulares da língua materna, a habilidade para inferir a estrutura abstrata da fala e a paridade das palavras com os objetos a que se referem. Com elas, desenvolve-se a habilidade de se comunicar em quaisquer das mais de sete mil línguas existentes atualmente.
Quando as crianças chegam ao Ensino Fundamental, aos 6 anos de idade, ainda há muito a se desenvolver estruturalmente. As longas fibras que conectam o córtex motor, que controlam os movimentos das pontas dos dedos, que executam o ato de escrever estão se mielinizando**. Este é um processo que envolve várias células presentes no cérebro e que leva tempo para acontecer. Esse tempo, que varia de criança para criança, pode ir dos 3 aos 7 anos.
Isto significa que exigir que todos estejam escrevendo seus nomes aos 4 anos pode impedir que as crianças em desenvolvimento utilizem os músculos apropriados para escrever. Aqueles que ainda não estão prontos, ou seja, não desenvolveram a mielinização dessas longas fibras, vão escrever com suas mãos e braços, mas deixarão de sinalizar este movimento para as pontas dos dedos – onde o movimento adequado da escrita deve ocorrer.
Esse movimento de aprendizagem motora é extremamente resistente a mudanças, diferentemente de outras formas de aprendizagem. Então, no caso daqueles que foram apressados no desenvolvimento da escrita, o que se verifica são adultos que se cansam e se tornam muito distraídos na hora de escrever. O que parece um “pulo” na infância, acaba por virar “muleta” para o resto da vida.
Para o desenvolvimento da linguagem, o que pode ser feito desde o início do processo é ler para e com a criança diferentes textos e deixar que ela brinque com os sons que formam as palavras: os fonemas. Aos poucos ela vai percebendo que o fonema é o som e que as letras são a representação gráfica desses sons; que tudo que falamos pode ser escrito e tem um jeito de se escrever. A criança reconhece rimas e aliterações, muito presentes nas brincadeiras cantadas e textos da tradição oral. Dessa forma, a criança vai caminhando para o que chamamos de consciência fonológica, Quanto mais a criança puder desenvolver sua consciência fonológica, mais chances ela terá de ser alfabetizada corretamente.
Crianças bilíngues
Quando se pensa no tanto que uma criança processa para aprender uma língua, tende-se a achar que aprender outras línguas na infância cria mais confusão. Isto não é verdade. As crianças bilíngues se equiparam às monolíngues em todos os marcos de seu desenvolvimento; não há atrasos ou prejuízos. Ocorre uma modificação cerebral, a nível estrutural, que traz benefícios a essas crianças em anos posteriores, como maior capacidade de memória de trabalho, que se refere àquela que mantém as informações ao nosso alcance enquanto delas precisamos; maior capacidade de inibir um comportamento; e maior flexibilidade cognitiva, que se refere à possiblidade de mudar de tarefa quando necessário.
Uma criança bilíngue pode apresentar, em uma das línguas, um vocabulário menor que o de um colega monolíngue. Isso é normal, pois ela tem de aprender e desenvolver seu repertório em duas línguas diferentes. É importante lembrar que, no total, as crianças bilíngues têm um número maior de palavras a seu dispor do que qualquer outra criança monolíngue.
Além disso, crianças que falam outras línguas desenvolvem maior capacidade de entender o ponto de vista do outro – também conhecido por empatia – e aumentam suas chances de ter uma vida mais prazerosa em sociedade. A pequena confusão que uma criança pode ter ao misturar palavras de duas ou mais línguas é a mesma que um adulto enfrenta na mesma situação. Não há com o que se preocupar!
Atenção e da interação
Talvez uma área que deva receber mais atenção de todos os envolvidos com uma criança seja a da atenção e da interação.
O cérebro é um órgão eficiente por natureza; elege aquilo que emprega menos recursos e executa uma tarefa da melhor forma. Quando se trata de atenção, isso acontece pela capacidade de concentração.
Verdade seja dita: não conseguimos nos concentrar em mais de uma coisa ao mesmo tempo. Isso não é possível nem quando jovens nem enquanto adultos. O chamado multitasking é um mito que se espalhou rapidamente e que deixa muitos de nós verdadeiramente doentes. Na criança em desenvolvimento, representa perigo maior porque, ao forçar a realização de várias tarefas concomitantes, o que ela está fazendo é desperdiçar seus recursos atencionais. O que se desperdiça, não se fortalece e, com isso, a capacidade de concentração desta criança tende a decair.
A interação, que será fundamental para o desenvolvimento da empatia, se constrói no estabelecimento e manutenção de relações sociais. Estas devem ser reais – de carne e osso – e não apenas virtuais. Crianças que aprendem sobre como interagir apenas em ambientes virtuais correm o sério risco de não desenvolver sua capacidade de se colocar na pele do outro, de perceber uma série de “pistas” emocionais que estão ao nosso dispor quando aprendemos a interpretar as expressões faciais e corporais.
Não se aprende como o outro se sente apenas por meio da “telinha”. Precisamos desenvolver e estimular nossas crianças através de ambientes reais, onde elas possam, de fato, exercer essa capacidade de se conectar com seu próximo e aprender a viver melhor em sociedade.
*Advogada formada pela Universidade de São Paulo (USP); professora de inglês licenciada pela Universidade Mackenzie; tradutora pela Associação Alumni; pós-graduada em Linguística Aplicada pela Universidade de Birmingham, na Inglaterra. Pós-graduada em Neurociências e Psicologia Aplicada pela Universidade Mackenzie com curso de extensão em Mind, Brain, Health and Education pela Harvard Extension School of Education. Mestre em Educação Interdisciplinar na Johns Hopkins University, nos Estados Unidos. Atualmente coordena o Special Interest Group (SIG) sobre Mind, Brain, and Education do Braz-TESOL. Autora do livro Aprender: entendendo o cérebro (Oficina Digital, 2018) e do portal NeuroMi.
**Mielinização é o processo de “encapagem” do axônio de um neurônio. De forma um pouco semelhante ao que acontece com um fio elétrico, em que uma capa de plástico reveste o material que faz a condução da energia para que esta se propague mais rapidamente e com maior eficiência. Quando os neurônios transmitem um impulso elétrico, outras células nervosas, chamadas glias, encarregam-se de revestir o prolongamento do neurônio que se conectará com outro neurônio para a transmissão do impulso elétrico. Esse revestimento é rico em gordura e essencial para a eficiente transmissão de “informações”. É essa substância que dá a aparência da massa branca ao cérebro.