Bárbara Falcão*
“As atividades transmídia, por seu caráter autoral, também levam os estudantes a refletir a respeito de si mesmos como seres humanos, cidadãos e participantes críticos de uma sociedade em constante transformação, que exige cada vez mais profissionais dinâmicos, flexíveis e participativos.”
Você já ouviu falar sobre narrativa transmídia? Essa concepção surgiu na publicidade e no marketing, mas hoje vem sendo experimentada de forma inovadora na Educação. Vamos discutir aqui sobre o que é transmídia, e qual é a diferença entre uma história “normal” e uma história transmídia. Falaremos também sobre por que usar o termo transmídia e não multimídia. E, finalmente, por que esse recurso é tão pertinente para ser usado na Educação.
A narrativa transmídia é uma história completa – com começo, meio e fim – contada por meio de várias mídias diferentes. Uma parte da história pode estar em um filme, outra, em um livro, outra, em um site e uma outra parte pode, ainda, estar em um jogo digital, por exemplo. Importante notar que não se trata de uma história que aparece em várias mídias, como uma adaptação de um livro para um filme, em que as duas narrativas são idênticas ou apresentam poucas modificações.
Em uma história transmídia, cada mídia conta uma parte diferente da história ou mesmo um desdobramento da história principal, isto é, uma mídia completa a informação presente na outra. É como se aquela história que você viu no filme continuasse no livro, depois tivesse seu final apresentado em uma história em quadrinhos.
A professora norte-americana Marsha Kinder foi uma das primeiras pessoas a usar o termo transmídia, e seu relato explica bem esse conceito. Ela começou a perceber que sua filha, pela manhã, via o desenho das Tartarugas Ninja, na televisão; à tarde, brincava com seus brinquedos das Tartarugas Ninja, criando ela mesma suas histórias; e à noite, assistia a um filme sobre as tartarugas mutantes, que contava uma história diferente da do desenho. A pesquisadora percebeu que sua filha ampliava a experiência com as tartarugas mutantes por meio de muitas mídias, que contavam histórias diferentes sobre as personagens, o que ela chamou de um grande sistema de entretenimento, que é ampliado conforme a vontade e interesse do usuário/consumidor da narrativa.
Essa ideia foi usada em várias produções famosas; o filme Matrix, por exemplo, usou a narrativa transmídia. Além da conhecida trilogia cinematográfica, as animações chamadas Animatrix apresentavam o começo da história, anterior ao que era contado nos filmes. Nas animações também estavam presentes códigos que abriam fases no jogo digital. Cada parte do universo ficcional criado pelas irmãs Wachowski está dispersa em mídias diferentes e, para ter uma experiência completa, o espectador/jogador deve transitar por esses diferentes canais.
Outro exemplo relevante do uso da transmídia no cinema ocorreu no lançamento do filme Batman, o Cavaleiro das Trevas, nos Estados Unidos. Durante a semana do lançamento, diversos fãs recebiam um telefonema do Comissário Gordon convidando-os a ajudar o Batman. É divertido imaginar o personagem de um filme falando com você ao telefone, extrapolando a história presente no filme e promovendo a participação dos fãs.
Essa participação do fã é outro aspecto notável da narrativa transmídia, porque o fã pode fazer parte de suas histórias preferidas por meio das fanfics. O termo em inglês para “ficção de fã” abrange as produções textuais que esses fãs de franquias famosas produzem, nas quais, muitas vezes, eles mesmos estão presentes nas histórias como personagens. Essas histórias, criadas e publicadas por fãs, partem do universo original da obra para criar histórias autorais. Os jovens produzem textos criativos, publicam e compartilham seus textos na internet, criando comunidades de leitores e extrapolando o enredo da obra original por meio da transmídia. É fácil achar sites dedicados exclusivamente a fanfics sobre a saga do bruxinho Harry Potter, por exemplo, em que os usuários postam suas produções e comentam as produções dos outros.
Essa produção de textos autorais, algo tão esperado nas aulas de Língua Portuguesa, acontece naturalmente por meio da transmídia na internet, então, nada melhor do que usar essas atividades que os alunos já realizam fora da escola para promover a aprendizagem dentro da sala de aula também.
Os mais jovens estão muito envolvidos nessa dinâmica de produção e consumo de conteúdos. Segundo um estudo sobre o que os pesquisadores chamaram de habilidades transmídia, realizado com adolescentes de vários países, esses jovens que usam as mídias digitais estão fazendo muito mais do que assistir a vídeos no Youtube ou divertir-se com jogos on-line. Os adolescentes estão criando e editando produções audiovisuais, sonoras, programas de computador e jogos digitais e, com isso, aprendendo a dominar as ferramentas para a produção desses conteúdos.
Esses jovens estão desenvolvendo habilidades para além do espaço escolar, e cabe à escola se apropriar dessa cultura que eles já estão produzindo e, desse modo, contribuir para uma formação mais completa, exigida pelo mundo contemporâneo com suas tecnologias digitais cada vez mais presentes em todas as áreas de nossas vidas. A transmídia serve muito bem para que a participação da escola possa ser mais efetiva nessa formação.
Muitas atividades podem ser propostas com o uso da transmídia para incentivar maior participação e comprometimento dos alunos, já que eles serão os criadores e produtores. Dessa maneira, promove-se uma mudança no papel do aluno, normalmente estabelecido em sala de aula como passivo, que fica sentado, escutando e absorvendo o que o professor traz. A transmídia propõe que o estudante seja ativo, que produza conteúdos e, assim, desenvolva habilidades.
Essas habilidades, que podemos entender como um “saber fazer”, vão muito além de dominar o uso de ferramentas como programas ou aplicativos. São habilidades de análise, de interpretação, de exercício da ética, de gerenciamento de emoções, de autocontrole e de construção de identidade, entre outras, segundo a pesquisa comentada anteriormente.
O estudante deve saber como fazer a pesquisa e definir quais conteúdos são confiáveis e adequados, pensar em questões éticas a respeito da publicação e do compartilhamento de produções, entender como seus textos — que podem ser verbais, visuais, audiovisuais, sonoros – inserem-se dentro da sociedade e refletir sobre seu papel no mundo, ao criar histórias sobre temas que tenham a ver com sua realidade.
Já podemos perceber que são muitas as vantagens do uso da transmídia na Educação em várias disciplinas. O professor de História, por exemplo, pode sugerir a produção de uma fanfic sobre algum fato histórico, estimulando a exploração de outros pontos de vista para que se faça uma reflexão crítica, por exemplo: ”Se os portugueses não tivessem conseguido colonizar o Brasil, como seria?”. Ou, ainda, propor pesquisas sobre como viviam os indígenas primitivos, e quais influências adquirimos dos portugueses em nosso cotidiano, estimulando, por meio de uma estratégia transmídia, que os estudantes pesquisem, reflitam e produzam conteúdo sobre um tema da História do Brasil.
O professor de Biologia pode pedir aos alunos que produzam um jogo digital sobre algum processo biológico ou mesmo propor a criação de uma narrativa sobre determinado tema, como uma história em que uma bactéria seja personagem, deixando a aula mais dinâmica e divertida para os alunos, promovendo aprendizagens que vão além do currículo da disciplina.
Essa interdisciplinaridade proporcionada pela narrativa transmídia, como a junção de várias disciplinas dentro de uma mesma atividade, também é muito enriquecedora. Muitas das atividades propostas, inclusive, podem ser aplicadas por professores de diferentes matérias, pois elas abrangem habilidades de diversas disciplinas e informações de várias áreas, cabendo ao professor o papel de mediador e facilitador, e não mais de detentor absoluto do conhecimento, e ofertando mais autonomia ao estudante.
A narrativa transmídia — e sua capacidade de integrar diversas mídias dentro de uma história maior — tem potencial muito grande de contribuir com a aprendizagem dos alunos, na medida em que valoriza os conhecimentos que eles já possuem, promovendo a criatividade e a participação desses estudantes na construção de saberes e reflexões críticas. O uso de atividades transmídia contribui, também, para o desenvolvimento do aluno como cidadão integrado à nova cultura digital.
Por meio da transmídia, a aula pode ficar mais divertida, produtiva e dinâmica, fazendo com que tanto professores quanto alunos conheçam mais sobre cultura digital e as novas tecnologias, sem deixar de valorizar as mídias tradicionais – como as mídias impressas –, já que a intenção é promover a integração entre elas.
As atividades transmídia, por seu caráter autoral, também levam os estudantes a refletir a respeito de si mesmos como seres humanos, cidadãos e participantes críticos de uma sociedade em constante transformação, que exige cada vez mais profissionais dinâmicos, flexíveis e participativos.
Possui graduação em Letras pela Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Mídias Digitais e Design Instrucional, atualmente cursa o mestrado profissional para professores de Português também na Universidade de São Paulo (USP). Autora e professora de Língua Portuguesa e Espanhola, já participou da produção de materiais didáticos em diversos movimentos sociais, instituições públicas e privadas e atualmente é professora na rede pública da cidade de São Paulo, onde desenvolve sua pesquisa sobre a aplicação da Transmídia no ensino de Língua Portuguesa.