Roxane Rojo*
Imagine um mundo em que seu dia começa com sua smart TV despertando você e acionando os vidros da janela, que se abrem para deixar entrar a luz. Você se levanta e toca a tela plana da TV para ver como está o trânsito lá fora. Ao escovar os dentes no banheiro, você aproveita para organizar sua agenda e responder a mensagens no espelho.
Ao preparar o café da manhã, abre a geladeira – em cuja porta há fotos digitais e vídeos de seus filhos – para pegar alguns ovos. Na bancada da cozinha, enquanto prepara uma omelete, você pode assistir ao jornal matinal, controlar a temperatura do fogão elétrico e, ao receber em seu celular uma chamada de sua mãe, basta colocá-lo sobre a bancada para que a chamada de vídeo possa ser vista e respondida por todos, na própria bancada.
Ao sair para o trabalho, o GPS de seu carro traça e exibe as melhores rotas, a partir de dados sobre o trânsito, e se comunica com as placas digitais de sinalização da cidade, enquanto você aproveita para responder no viva-voz às chamadas e mensagens mais importantes acumuladas. Seus filhos dirigem-se ao ponto de ônibus e, ao encostarem na placa digital do ponto o celular com o endereço do lugar a que precisam ir, esta lhes indica o melhor ônibus e exibe o mapa de seu trajeto na cidade, caso queiram ir a pé. Encostando novamente o celular na placa, eles transferem esse mapa para o aparelho, para não se perderem.
No seu trabalho, a pauta do dia é fechar uma edição da revista de moda (ou a planta arquitetônica para o cliente das 14h, ou o planejamento didático do material das aulas da próxima quinzena…). Para isso, você e sua equipe reúnem-se em torno da ampla mesa digital que já exibe boa parte do material necessário (textos, imagens, vídeos, diagramas, tabelas, mapas, objetos digitais etc.) e que, com um gesto ou toque de dedo, busca outros elementos e os acrescenta. Esses materiais, durante a reunião, podem ser deslocados, reformados e editados coletivamente até chegarem ao resultado visado. Participam da reunião, por videoconferência, dois colegas, cada um de um lado do mundo. A mesa se comunica com a lousa ou telão digital, que exibe, para todos, os videoconferencistas e os resultados do trabalho conjunto.
À noite, para descansar, você e sua família podem escolher ler um livro digital ou assistir a filmes ou vídeos na ampla tela da smart TV da sala, que projeta hologramas 3D das imagens escolhidas.
Parece ficção científica? Mas não é. Quase todas as coisas mencionadas acima já se encontram disponíveis e funcionando para que as tenhamos em casa: vidros inteligentes, smartphones, smart TV, telas de toque de todos os tipos em dispositivos portáteis, como notebooks, celulares ou tablets, e fixos, como computadores de mesa, lousas, telões, painéis e mesas digitais. Ainda são extremamente caros, mas, pelo menos no que tange a smartphones e tablets, o preço tem diminuído aceleradamente.
Outro problema é que, para serem eficientes, precisam de uma boa conexão sem fio, e nossas cidades e prédios públicos, mesmo as universidades, ainda estão muito longe de estarem devidamente conectados, por um certo descaso das autoridades em relação a isso.
O terceiro e maior problema é que ficamos fortemente dependentes da energia – até o momento, principalmente elétrica –, a tal ponto que nos sentimos desvalidos, isolados e incomunicáveis quando falta luz. Seria, pois, também preciso implementar políticas de energia renovável (como a eólica e a solar) mais abrangentes.
Mas o que tem tudo isso a ver com a Educação?
Bem, é que se a tendência de nossa vida em centros urbanos parece ser essa e se a vida de nossos alunos começa a ser assim, como pode a escola continuar ignorando esses fatos? Como dizia Ronaldo Lemos, em novembro de 2011, em um vídeo do Mod MTV, um dos problemas da Educação no mundo de hoje é o apego excessivo ao texto: a expressão de ideias não acontece mais só escrevendo alguma coisa. A vida, ela é muito mais multimídia hoje em dia.
Isso significa que não basta mais a escola enfatizar os letramentos da letra e os gêneros discursivos da tradição e do cânone. É urgente enfocar os multiletramentos e os novos letramentos que circulam na vida contemporânea de nossos alunos.
Multiletramentos são as práticas de trato com os textos multimodais ou multissemióticos contemporâneos – majoritariamente digitais, mas também impressos –, que incluem procedimentos (como gestos para ler, por exemplo) e capacidades de leitura e produção que vão muito além da compreensão e produção de textos escritos, pois incorporam a leitura e (re)produção de imagens e fotos, diagramas, gráficos e infográficos, vídeos, áudio etc.
Novos letramentos, ou letramentos digitais,são um subconjunto dos multiletramentos, definido, segundo Lankshear e Knobel (2007), pela “nova” tecnologia (digital) adotada, mas não principalmente. O que define fundamentalmente os novos letramentos, segundo os autores, é um novo ethos, isto é, uma nova maneira de ver e de ser no mundo contemporâneo, que prioriza a interatividade, a colaboração e a (re)distribuição do conhecimento, ao invés da hierarquia, da autoria e da posse controlada e vigiada do conhecimento por diversos agentes, como as escolas, as editoras e as universidades.
A maior parte dos gêneros discursivos que estão presentes nas atividades letradas que mencionei no início do texto incorpora textos escritos, mas não unicamente e nem principalmente. Apresentam também diagramas, tabelas, campos, formulários, boxes (como e-mails, mensagens instantâneas e agendas) ou fotos, imagens, mapas, plantas, vídeos, animações, sons, música, fala e uma multidão de outras linguagens. Isso quer dizer que as capacidades de leitura e escrita dos letramentos da letra não são mais suficientes para a vida contemporânea. Assim, não bastam mais para compor os currículos nas escolas.
Os cenários futuros para a Educação devem incluir a leitura e escrita de gêneros de textos multissemióticos ou multimodais (compostos por todas essas linguagens, para significar e funcionar) e os multiletramentos e novos letramentos requeridos pelas práticas em que eles estão inseridos.
O que nos interessa aqui, em termos de “cenários futuros” para as escolas, é menos o aspecto espetaculoso da tecnologia – já existente, mas ainda um tanto caro para nós –, mas a metodologia de ensino-aprendizagem e os multiletramentos que ela incorpora, típica dos novos letramentos: um aluno que estuda práticas de trato com os textos multimodais ou multissemióticos contemporâneos certamente estará mais preparado para a vida investigativa e colaborativa do mundo contemporâneo.
Indicações sobre os assuntos abordados
● Todo o cenário tecnológico que foi narrado no início do texto pode ser visto no vídeo intitulado Um dia feito de vidro, que já teve mais de 25 milhões de visualizações, de uma empresa fabricante de vidros e cerâmicas para dispositivos digitais de tela de toque. Disponível em: <www.youtube.com/watch?v=6Cf7IL_eZ38>. Acesso em: out. 2018.
● Ronaldo Lemos fala do “apego excessivo ao texto pela Educação” no Programa 8, sobre Educação e tecnologia, da segunda temporada do Mod MTV.Disponível em: <www.youtube.com/watch?v=WUTlPB7_Kz0>. Acesso em: out. 2018.
● Para saber mais sobre multiletramentos e novos letramentos, ver o vídeo “Pedagogia dos Multiletramentos”, produzido pelo programa Escrevendo o Futuro para o curso on-line Caminhos da Escrita. Disponível em: <www.youtube.com/watch?v=IRFrh3z5T5w> (parte 1) e <www.youtube.com/watch?v=uj4gNjksb88> (parte 2). Acessos em: out. 2018.
● Você sabe o que é um texto multimodal? Recomendamos um artigo publicado no site do Observatório da Imprensa para entender melhor o que torna um texto multimodal.
Disponível em: http://observatoriodaimprensa.com.br/diretorio-academico/textos-multimodais-a-nova-tendencia-na-comunicacao/. Acesso em: set. 2018.
Referências bibliográficas e webgrafia
LANKSHEAR, C.; KNOBEL, M. Sampling “the New” in New Literacies. In: KNOBEL, M.; LANKSHEAR, C (Orgs.). A New Literacies Sampler. New York: Peter Lang, 2007. v. 29, p. 1-24.
Corning Incorporated. A day made of glass (Um dia feito de vidro). Disponível em: <www.youtube.com/watch?v=6Cf7IL_eZ38>. Acesso em: out. 2018.
MOD-MTv; LEMOS, R. Educação. Disponível em: <www.youtube.com/watch?v=WUTlPB7_Kz0>. Acesso em: out. 2018.