Adriana Friedmann*
Quando falamos no brincar, associamos este ato às crianças e às infâncias. Quando pensamos no brincar, nos remetemos à nossa própria infância. Quando defendemos o brincar, cada um evoca as crianças com quem convive. Quando sentimos o brincar ou relembramos o que se sentíamos ao brincar, o corpo e a alma relembram o que é SER CRIANÇA.
Não há dúvida de que o brincar é algo muito presente no universo das crianças. Mas de quais crianças estamos falando? Não podemos mais pensar nem almejar que exista “a criança”, como um ideal a ser atingido, e sim pensar “nas crianças” e suas diversas realidades.
As crianças formam-se a partir da sua herança genética; da educação familiar, formal e comunitária que recebem; da influência do ambiente no qual crescem; e dos vínculos que estabelecem com as pessoas mais próximas, sobretudo nos primeiros anos de vida. Assim, a diversidade de crianças, realidades e infâncias, sobretudo olhando para as diferentes regiões, situações socioeconômicas e contextos do nosso país, constitui uma variedade impossível de ser classificada. É necessário olhar para todas essas realidades para se pensar no brincar.
Se nos detivermos e olharmos para as crianças de hoje, se verdadeiramente conseguirmos nos despojar de teorias, juízos e preconceitos e nos abrirmos para ouvi-las, vamos descobrir um vasto universo, ao mesmo tempo familiar e desconhecido para nós. As crianças de hoje têm um repertório de conhecimentos, de estímulos, de criatividades que as levam a mesclar, nas suas brincadeiras, no seu jeito de brincar e de se comportar, todos esses elementos, assim como os seus conteúdos e potenciais individuais.
Mas, ao mesmo tempo, as crianças de hoje são pressionadas pela sociedade, são hipnotizadas pela mídia e pelo mercado. Muitas vezes, são privadas de viver suas infâncias plenamente. As crianças de hoje são vítimas de uma realidade que, em grande parte as isola do contato com a natureza, do contato com os pais ou cuidadores. As crianças de hoje carecem de ritmos, de tempos e de espaços para brincar livremente. As crianças de hoje não têm tido oportunidades para serem crianças!
Pensemos nas crianças das grandes cidades e das áreas rurais; nas crianças que vivem à beira de rios, nas praias, nas favelas, nas comunidades ribeirinhas, indígenas e quilombolas. Pensemos nas crianças que moram em apartamentos, em casas ou em palafitas. Pensemos nas crianças que vivem em abrigos, que passam o dia todo nas instituições. Pensemos nas crianças que passam horas na frente da TV, de computadores, videogames etc. Pensemos em todas as crianças com seus sofrimentos, suas feridas psíquicas, vivendo episódios emocionais que vão afetar seu desenvolvimento integral, seus temperamentos e comportamentos. Todas vivendo realidades diferentes e, ao mesmo tempo, com necessidades similares para o seu desenvolvimento acontecer de forma saudável.
Falar em “desenvolvimento integral saudável” é entender que as crianças, desde o útero materno, passam por etapas. Seu corpo, suas emoções, seu raciocínio, sua capacidade de estabelecer vínculos e comunicar-se com outros, suas habilidades e seus valores passam por etapas lineares – com avanços e retrocessos – e por processos profundos de desenvolvimento. As crianças vão sendo mais ou menos estimuladas conforme os cuidadores e os contextos em que crescem. Nesses contextos, elas entram em contato e constrói diferentes linguagens.
O brincar é uma dessas linguagens; é uma das primeiras linguagens da natureza humana. Em cada brincadeira há uma narrativa, um “texto” sendo “escrito” por cada criança. Quando brincam de faz de conta, as crianças imitam, representam, movimentam-se, desenham, dançam, correm e pulam. Elas interagem com outras crianças e adultos quando brincam com jogos de tabuleiro e participam de brincadeiras e esportes coletivos. Quando tocam instrumentos, cantam, criam ou recontam histórias – todas linguagens lúdicas, as crianças, sem consciência, falam de si, das suas realidades, do que estão vivendo, de como estão vendo o mundo; revelam suas angústias, alegrias, medos e potenciais; revelam seus interesses, o que sabem, o que precisam.
O brincar faz parte de um patrimônio universal, regional e cultural. O ser humano sempre brincou, como evidenciam, sobretudo, pinturas arqueológicas, fotografias e estudos em diversas áreas do conhecimento. Desde os anos de 1970, um movimento mundial de resgate de brincadeiras tradicionais, transmitidas de forma oral de uma geração para a outra, tem tido resultados interessantíssimos. Um documento atual e importante, através do qual temos uma cartografia das brincadeiras das crianças de hoje no Brasil, é o Mapa do Brincar (http://mapadobrincar.folha.com.br) que mostra as diversas realidades lúdicas de crianças e grupos infantis nas diferentes regiões do país.
O brincar precisa de tempo e espaço. Muitas crianças têm sido pressionadas nos dias atuais e estão com o seu tempo preenchido de atividades e obrigações. Além disso, há uma grande expectativa das famílias em torno da formação das crianças, que quase não há tempos e espaços para elas brincarem de forma livre e saudável. Poder não fazer nada, brincar com a imaginação, mesmo que sozinhas, escolher amigos, brincadeiras e objetos para brincar e montar suas histórias são essenciais para o desenvolvimento da autonomia e linguagem. Pintar, esconder-se, experimentar, ter contato com diversos materiais e atividades, música, movimento, arte… Tudo isso é necessário, não é perda de tempo! É brincando que a criança se desenvolve, cresce, aprende, se descobre e descobre o mundo.
Nós adultos achamos que ainda precisamos estar o tempo todo interferindo, direcionando ou controlando. A segurança é fundamental, mas não pode tolher o movimento lúdico das crianças. Esses respiros são essenciais para cada criança poder ser quem ela é. Se há uma intervenção necessária por parte dos educadores e cuidadores, é a de criar oportunidades para as crianças brincarem, ou seja, escolher atividades, espaços, objetos e/ou brinquedos adequados para cada idade, situação e comportamento.
Nos dias atuais, os desafios de pais, educadores e cuidadores são criar espaços, tempos e oportunidades para que as crianças possam “falar suas linguagens”, viver suas infâncias, escolher do que, com quem e com o quê querem brincar. É muito significativo observá-las (não significa vigiá-las!), escutá-las e dar espaço para o brincar livre e saudável. Isso significa “conhecê-las” e saber o que querem, o que vivem, o que precisam, a partir da sua espontaneidade, nos seus momentos livres ou nas atividades dirigidas. Assim, será possível criar espaços de diálogos com as crianças de hoje, deixando-as ser crianças e viver suas infâncias.
*Doutora em Antropologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP),mestre em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e em Pedagogiapela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (Feusp). Criadora e coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Simbolismo, Infância e Desenvolvimento (Nepsid) e do Mapa da Infância Brasileira. Coordenadora e docente de cursos de pós-graduação lato sensu na A Casa Tombada (Polo da Faculdade de Conchas – Facon, SP). Autora e organizadora de vários livros e artigos na área, dentre eles: O desenvolvimento da criança através do brincar (Moderna, 2006), A arte de brincar (Vozes, 2013), Linguagens e culturas infantis (Cortez, 2016) e Escuta e observação de crianças: processos inspiradores para educadores (Sesc, 2018). Palestrante, pesquisadora e consultora nacional e internacional de ONGs, fundações, secretarias e escolas nas temáticas da infância, pesquisas com crianças e linguagens expressivas.