Um relato sobre o papel da escola na luta por espaços democráticos de acolhimento e compreensão ao debate antirracista rumo à conscientização. Ainda é só o começo.
Texto Djamila Ribeiro
Nasci a caçula de quatro filhos de meu pai estivador do Porto de Santos, em uma época que a categoria profissional vivia outros tempos, com qualidade e condições de manutenção do Hospital e do Colégio Moderno dos Estivadores, onde estudei a maior parte de minha vida. Minha mãe, Erani, era dona de casa, após trabalhar como empregada doméstica desde muito cedo. Após ouvir de um pai de santo que eu morreria se não fosse iniciada na religião, minha mãe me levou ao terreiro para “fazer o santo”, isto é, do ponto de vista teológico, morrer para nascer um orixá na terra. No ritual, raspa-se a cabeça e veste-se branco da cabeça aos pés. Naqueles dias, final dos anos 1980, ser uma menina preta era um grande desafio diário. Ir à escola de branco e com a cabeça raspada coberta por um turbante não foi nada fácil, mas, com fé nos orixás, resisti ao passar por maus momentos.
Lembro que adentrei meu colégio e vi a reunião de pessoas brancas e de “pessoas que não sabiam que não eram brancas” para me hostilizar e, até mesmo, puxar meu turbante. Agarrei nas mãos de Iemanjá, cultuada no Brasil como o orixá do mar e dos rios que chegam ao mar, e pedi a paz necessária para atravessar por esse e por outros momentos. O ódio a mim, traduzido nesse e em tantos outros episódios durante minha infância e adolescência, bem como aos símbolos da cultura negra brasileira, encontrou na escola o ninho perfeito para ser semeado. Vindo do lugar social de onde vim, não fui a única a passar por essas situações, pelo contrário. Monique Evelle, jovem pensadora negra brasileira, tem uma frase que marcou o debate de mulheres negras nos últimos anos: “Eu nunca fui tímida, fui silenciada”. É verdade. Muitas meninas negras, com a potência dos trovões e das cataratas, foram silenciadas pelo sistema racista.
“A escola como berço antirracista rediscute o conhecimento, forma suas equipes e promove interações entre as múltiplas realidades rumo à conscientização coletiva.”
Na tradição do feminismo negro brasileiro, que traz o legado de mulheres negras que pensam o mundo e afirmam suas existências invisibilizadas ao longo da história, transmitindo seus saberes descreditados pela tradição colonial, vim a adquirir saberes fora da escola. A grande Lélia González, figura que deveria ser estudada em todas as escolas do país, teorizou a hierarquização de saberes como produto da classificação racial da população. Ou seja, quem possui o privilégio social possui o privilégio epistêmico, uma vez que o modelo valorizado e universal de ciência é branco.
Segundo González, a consequência dessa hierarquização legitimou como superior a explicação epistemológica eurocêntrica, conferindo ao pensamento moderno ocidental a exclusividade do que seria conhecimento válido, estruturando-o como dominante, e, assim, inviabilizando outras experiências do conhecimento. Em outras palavras, na escola, estudei os europeus como paradigmas sociais e políticos. Entre muitos exemplos possíveis, recebi mais informações sobre a Comuna de Paris do século 18, que durou dois meses, como o ápice de resistência política, do que sobre o Quilombo de Palmares, que durou quase 100 anos, apesar das diversas investidas portuguesas. Tive várias aulas sobre mitologia grega, ao passo que a africana, trazida pelos ancestrais na travessia para o Brasil, segue sendo demonizada e alvo de intolerância religiosa.
Falar sobre descolonizar o conhecimento é discutir o conhecimento em si, bem como o que é trabalhado na escola. Do lugar de onde partia, estar com símbolos da cultura afro-brasileira era algo muito natural, pois minha avó Antônia, mãe de Erani, era ialorixá, isto é, mãe de santo, e também trabalhava como empregada doméstica. Minha bisavó também e as gerações seguintes eram de mulheres escravizadas numa época em que, pela força da Constituição de 1824, pessoas negras eram impedidas de frequentar a escola. A convivência intra comunidade, os saberes transmitidos de forma oral de geração a geração foram, para além de uma prática ancestral, um imperativo para as pessoas negras preservarem seus conhecimentos. Agradeço ter conhecido e convivido com minha avó. O feminismo negro me ensinou a refutar uma epistemologia mestre e reconhecer diferentes saberes. O saber do banho de ervas, dos chás e das histórias dos ancestrais divinizados.
“Eu nunca fui tímida, fui silenciada.” Monique Evelle
Os alunos não são naturalmente desinteressados e reprodutores das violências sociais, mas são incentivados pela escola para assim serem.
De outro lado, movimentos negros lutaram incessantemente pela implementação do ensino da história africana e afro-brasileira nas escolas, que culminou na aprovação da Lei n. 10.639/2003 e, posteriormente, na Lei n. 11.465/2008, a qual previu a obrigatoriedade de ensino da história dos povos indígenas. Petronilha Beatriz, relatora das diretrizes curriculares, bem como outras ativistas dos movimentos negros, tais como Azoilda Trindade, Nilma Lino Gomes, entre tantas outras, foram os passos que vêm de longe para a construção desse marco legal. Para a efetivação da educação antirracista, que só é possível a partir do conhecimento da história de um povo, movimentos ao redor do país têm lutado escola a escola para implementação da Lei, que, embora fundamental, não prevê sanção para seu descumprimento, como também tromba com a má qualidade da formação de professores e professoras, que precisam se aperfeiçoar.
Mais tarde, muito tempo depois dos meus anos como aluna de escola, me tornei professora de Filosofia de uma escola pública na periferia de Guarulhos, na região metropolitana de São Paulo. Foi uma experiência um tanto quanto curta, de pouco mais de um ano, quando então consegui a aprovação como bolsista para minha pesquisa de mestrado, mas ainda assim intensa e fundamental para a perspectiva do que um ambiente escolar deve semear para conseguir proporcionar uma educação antirracista.
Era uma dificuldade imensa: a escola projetada em uma arquitetura hostil, de desvalor aos alunos e profissionais. A sala superlotada, com alunos muito pobres e um ambiente de precariedade e de reprodução de todas as violências presentes na sociedade. Um aluno que habitava uma residência com uma laje discriminava o outro cuja casa não tinha laje. Meninos homossexuais eram alvo de todo o tipo de assédio moral e meninas estavam em relacionamentos com homens muito mais velhos e prenunciavam gravidez precoce. No meio disso, o caderno do Estado, com um material absolutamente incompatível, exigindo que ensinasse filósofos que eu estava aprendendo na faculdade. Na sala dos professores, comentários sobre as características físicas das alunas, as “novinhas”, tudo muito naturalizado pela direção, que fazia ouvidos moucos às minhas queixas. Foi uma época desafiadora na minha vida, em que convivia mais fora da sala dos professores do que dentro.
De certa forma, a experiência como pessoa negra como educadora foi resumida pela autora estadunidense Bell Hooks, em Ensinando o pensamento crítico – sabedoria prática: “O destino de professores negros, do ensino básico ao superior, é diferente do destino de estudantes negros. Muitos de nós ensinam em espaços predominantemente brancos. Nossas salas de aula são, com muita frequência, compostas por estudantes brancos. À primeira vista, pode parecer que professores negros recebem o respeito e a consideração dispensados a quaisquer professores, independentemente de raça. No entanto, um olhar mais profundo revela que professores negros (e outros professores não brancos) encaram tensões e conflitos totalmente diferentes daqueles de colegas brancos. Professores negros também encaram diferentes questões baseadas em gênero. (…) o sistema patriarcal assegura que as mulheres negras bem-sucedidas, tanto no passado quanto no presente, raramente recebem o respeito e a atenção que seus colegas homens recebem”.
Certo dia, entrei na sala de aula, que já estava uma bagunça, e comecei a escrever na lousa a letra de “Homem na estrada”, hino da população negra, de autoria dos Racionais MC’s. Os alunos foram desconfiando, ficando em silêncio: “Por que a professora está escrevendo a letra de rap?”. Lembro-me de perguntar se eles conheciam a letra e me responderam que sim, claro. Então, começamos a refletir criticamente sobre o que significa essa letra, porque isso também é pensar filosoficamente. Dali, foram surgindo coisas incríveis, reflexões transformadoras. Os alunos e as alunas não são naturalmente desinteressados e reprodutores das violências sociais, mas sim formatados na escola para assim serem. Falar em uma escola como berçário para a educação antirracista é falar na ligação necessária que deve haver entre a pessoa estudante e o material trabalhado em sala de aula com vistas à conscientização sobre a realidade que a cerca. Isso significa, acima de tudo, uma troca entre o(a) educador(a) e os estudantes que ali estão.
Uma escola como berço antirracista deve, a meu ver, atravessar o convívio dos alunos, rediscutir o que se entende por conhecimento, aperfeiçoar professores, professoras, diretores e diretoras, como também promover uma interação com estudantes a partir de suas realidades com vistas à conscientização coletiva. Aquela que rumar para a reunião desses e de outros predicados antirracistas estará sendo agente da transformação da sociedade por novos marcos civilizatórios.
DJAMILA RIBEIRO é mestra em Filosofia Política pela Universidade Federal de São Paulo. É escritora autora dos best-sellers Lugar de fala; Quem tem medo do feminismo negro; e Pequeno manual antirracista.
PARA SABER MAIS:
HOOKS, B. Ensinando o pensamento crítico: sabedoria prática. São Paulo: Editora Elefante, 2020.
RACIONAIS MC’S. Homem na estrada. São Paulo: Zimbabwe Records, 1993. Disponível em: <mod.lk/rac_mcs>.