Daniel Munduruku*
Eis uma pergunta que nunca me fizeram quando criança. Nenhum adulto jamais insinuou que eu precisava ser alguma coisa quando me tornasse homem. Somente quando entrei na escola é que comecei a ouvir a pergunta que tinha em si a afirmação de que eu precisava ser alguém quando crescesse.
Não me lembro de meu pai ou minha mãe ter me colocado a obrigação de ser outra coisa além do que eu já era. E o que eu era? Criança. Era a única coisa que eu tinha de ser, portanto. Eu não precisava ser mais nada.
Lembro bem que, nas conversas entre adultos,havia, vez ou outra, discussões acaloradas sobre o tema. É que a comunidade se sentia bombardeada por ideias que vinham de fora – quase sempre acompanhadas por uma garrafa de pinga – que diziam da necessidade de acompanhar o ritmo da cidade grande. Entre ataques e defesas, havia sempre quem trazia o discurso da tradição. Tal discurso lembrava que era preciso seguir a sabedoria da natureza e retomar aquele caminho para poder garantir a felicidade das futuras gerações.
Na época, eu não entendia direito tal discurso. Tudo era meio confuso para mim, mas dava para ter alguma noção quando, em casa, meus pais retomavam a conversa e iam “traduzindo” o que os mais velhos discutiam. Ali, entendi que a tradição defendida pelos velhos passava pela manutenção da forma ancestral de educar para o presente, para o agora.
Com o passar do tempo, fui compreendendo melhor. Aprendi que nossa gente é um povo do presente. Cada fase da vida é marcada com rituais de passagem. A criança deve ser tratada apenas como criança; o jovem, como tal; o adulto deve assumir seu papel de adulto; o velho não pode abrir mão de sua função social. Se cada pessoa for educada para viver seu presente, será formada como um sujeito social fundamental para o bom andamento da vida comunitária.
Criança não deve querer ser outra coisa; jovem não pode desejar ser algo além do que é. Se o fizer, em algum momento, lhe faltará algo e, naturalmente, sentirá saudade do momento que não viveu. E, assim, não poderá viver plenamente sua humanidade juvenil. O mesmo pode ser dito do adulto que não viveu sua adolescência no momento certo. Correrá o risco de tornar-se um adolescente de 45 anos ou mais. E quem perde com isso é a sociedade que precisa contar com um adulto pleno.
Já o papel do velho é ainda mais importante do que os anteriores. O velho precisa aceitar sua condição de contador de histórias, de formador do espírito dos mais jovens. Só conseguirá fazer isso, no entanto, se tiver vivido todas as fases anteriores. Ele precisará aceitar a plenitude de seu papel e, para isso, não deverá abrir mão do momento de vida que vive. O jovem precisa dele como referencial para seu crescimento.
É, portanto, uma cadeia, uma sequência que precisa ser respeitada para que a humanidade das pessoas seja plena e a tradição faça sentido. Perguntar o que a criança vai ser quando crescer é especular sobre um futuro que é fictício; é tirá-la de seu presente fazendo-a desejar um tempo que só existe na ficção ocidental – essa que exige das pessoas planejamento e domínio de um tempo que não pertence a ninguém porque não é real.
Mais do que nunca, é necessário e urgente educar nossas crianças para viverem seu presente; caso contrário, corremos o sério risco de criar pessoas infelizes.
*Escritor indígena, graduado em Filosofia e licenciado em História e Psicologia. Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-doutor em Linguística pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Comendador da Ordem do Mérito Cultural da Presidência da República desde 2008. Diretor-presidente do Instituto UKA – Casa dos Saberes Ancestrais. Autor de mais de 50 livros para crianças e jovens, recebeu diversos prêmios no Brasil e no exterior, entre eles o Prêmio Jabuti, em 2017, na categoria Juvenil. Muitos de seus livros receberam o selo Altamente Recomendável outorgado pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ).