Alcielle dos Santos*
Ser pai ou ser mãe hoje pressupõe uma atuação digna de deuses do Olimpo. Há uma crença corrente na sociedade de que os pais e mães devem acompanhar tudo na vida de seus filhos e, assim, ao primeiro sinal de risco, estar prontos para evitar que seus filhos se machuquem ou sofram; devem saber de tudo – de nutrição a medicina – e estar sempre presentes, em todos os momentos. Como dar conta de tanto? É preciso dar conta de tanto?
Certamente, quem convive com crianças já se viu querendo uma folga das perguntas que se sucedem, da energia que não acaba ou do dever constante de dar atenção ao outro o tempo todo. Porém, junto com esse sentimento vem a culpabilização que se impõe por sentir-se assim. Mas será que não é humano querer um tempo para si mesmo quando se tem filhos, netos e/ou sobrinhos para cuidar?
Em contrapartida, todos nós, em momentos saudosistas da nossa infância, na maioria das vezes superestimada, já proferimos máximas que começam com “No meu tempo…”: “No meu tempo e com a sua idade eu já ia à padaria sozinho”, “Na sua idade, eu cuidava das minhas coisas”, “No meu tempo, além de me virar, eu cuidava dos meus irmãos menores”. O interessante é que frases assim vêm justamente daqueles mesmos indivíduos que possuem dificuldade de delegar responsabilidades ou de confiar tarefas, sem exercer controle direto: nós. Ou seja, temos vontade de permitir mais, mas temos medo. Medo de quê?
Temos medo de ver crianças machucadas ou em sofrimento.
O interessante é que em algum momento já ouvimos ou ouviremos de um professor de Educação Física que crianças precisam correr e cair para saber cair e não se machucar; ou de uma orientadora educacional, ou psicóloga escolar, que é preciso confiar mais. Porém, como começar? Por que é tão difícil dar autonomia a crianças?
Manter crianças vigiadas foi uma prática que emergiu na sociedade civilizada europeia, em que meninos deveriam ser cavalheiros e meninas deveriam ser damas. Ao longo dos séculos, passamos a fazer concessões e crianças voltaram a poder brincar nas ruas, inventar jogos e viver em bandos. Quem não se encantou pela liberdade conquistada pelos irmãos da família Von Trapp, ao ganharem roupas de brincar, no filme A noviça rebelde? Porém, a urbanização roubou de meninos e meninas, novamente, essa possibilidade; trancou-os em apartamentos, que mesmo em residenciais equipados com playgrounds e piscinas sempre há vigilância severa com aparatos de câmeras de vigilância. O monitoramento do filho em tempo real alcançou muitas das escolas através de aplicativos. É preciso pensar até que ponto estamos interferindo na autonomia das crianças que sabem estar sempre vigiadas, seja por câmeras, professores, inspetores de alunos ou até mesmo por seus próprios pais, via aplicativos.
No entanto, a vigilância excessiva não responde a uma questão: como mediar a educação de crianças durante o seu desenvolvimento? Quando intervir, quando fazer junto, quando simplesmente estar junto e quando se distanciar? Se deixarmos um bebê sem assistência, mínima que seja: nutrição, higiene, afeto do colo, tudo que poderá fazer para se defender será chorar. Porém, conforme as crianças crescem, é preciso fazer a transição para uma alternância de atitudes de controle e tutela que não é nada clara. A passagem desse momento de disponibilidade quase que integral da fase dos bebês para a redução gradativa da atenção dispensada, conforme as crianças crescem, é algo que não se ensina aos pais e sobre o que pouco se conversa ou pesquisa.
Há um crescimento considerável de literatura e blogs em que mães e pais socializam seus dilemas e trocam conselhos e experiências de como ensinar os filhos a esperar, a cumprimentar quando chegam, a não fazerem escândalos, a se desconectarem de jogos e desenhos animados, a consumir sem desperdiçar, ou até mesmo como educar, em linhas gerais, e como conversar com seu filho.
Estariam eles, pais, a buscar e ler o óbvio? Perguntei-me em alguns momentos. Não estão, concluí, examinando alguns relatos que trago de memória da minha trajetória como coordenadora pedagógica. Muitos foram os dilemas ouvidos por mim, que diziam respeito ao mesmo tema: até que ponto dar, ou como dar autonomia aos filhos, em relação à gestão de suas vidas como estudantes. Dúvidas como: “Você acha que posso confiar quando diz que está indo bem?” ou “Eu achei que não precisava mais conferir as notas no site da escola, que dava para confiar.”, traziam uma outra dimensão da autonomia: a responsabilidade.
As dúvidas aumentavam quando as crianças eram mais agitadas que os colegas de classe e requeriam repreensões, ou punições. Normalmente, os castigos pensados pelos pais retiravam toda a autonomia conquistada, além de serem pouco eficientes para o cerne do problema: “Vou conferir toda a lição de casa até que melhorem as notas.”, “Retirei o videogame e o computador para que ele(a) estude.”. Ao entenderem que os filhos não geriam suas escolhas, frente às responsabilidades da vida escolar, a autonomia conquistada até o momento era reduzida a zero. Os pais comunicavam punições imponderadas para filhos que não agiam com responsabilidade dentro da autonomia que possuíam. O que não percebiam é que a retirada de autonomia extraía dos filhos a oportunidade para que aprendessem a gerir escolhas e a responsabilizarem-se, de fato, por elas.
O desafio em casos assim é trabalhar exatamente as habilidades que não se tem para ter de dividir o tempo entre o estudo e o lazer. Como os pais podem atuar nisso? Não na fiscalização apenas: fez/não fez, estudou/não estudou, mas na mediação da aprendizagem: “Como você deveria ter se organizado para ter tempo de estudar e brincar?”, “O que deveria ter feito primeiro?”, “Qual foi sua dificuldade para não ter conseguido?”, “Como posso ajudá-lo a conseguir?”. Perguntas como essas retiram os pais da postura de mero controle dos castigos padronizados e os levam à atuação como mediadores do desenvolvimento autônomo dos filhos.
Nesta proposta, busca-se também romper o estereótipo social de que mães e pais tenham respostas para tudo, soluções mágicas para o mau comportamento dos filhos e sejam levados a deixar de perguntar, de propor e de construir possibilidades com eles. Mantêm-se apenas as regras necessárias, evitando-se punições e relações cansativas, pouco afetuosas e que não educam para a autonomia, mas tão somente para a escolha: obedecer ou desobedecer. Ao mesmo tempo, dessa forma, não se abandona a responsabilidade da supervisão por parte dos pais, uma vez que a autonomia dos filhos está em desenvolvimento. O ganho é o investimento exatamente neste ponto, no processo de aquisição da autonomia, algo muito prazeroso de se viver e que gera aprendizagens também para os pais.
As atividades de rotina como colaborar com a arrumação da casa ou preparar-se para um passeio são outros momentos em que esse exercício pode se dar entre pais e filhos. Lembro-me da minha mãe explicar, para mim e para o meu irmão, o roteiro de tudo que faríamos fora de casa, antes de sairmos: “Vamos à casa da sua tia, lá tomaremos lanche, experimentem o que ela oferecer, vocês poderão brincar apenas dentro do apartamento com seus primos; ao voltarmos para casa, passaremos no supermercado”. O roteiro era tão claro que não caberia, por exemplo, pensar em tomar lanche no supermercado, pois sabíamos que o combinado era experimentar o que minha tia oferecesse. Saíamos sabendo para onde iríamos, o que e como faríamos… havia um planejamento partilhado e, a partir dali, minha mãe não precisava ficar vigiando e reorientando cada passo. Observei, recentemente, uma amiga fazer isso com a filha que lhe questionava por que ainda não poderia ir embora de um lugar; ela parou e explicou com clareza o dilema que o marido, pai da criança, estava a resolver, mesmo sendo aquele um assunto do “mundo adulto”. A explicação não buscou consolar (“daqui a pouco vamos”) ou culpabilizar sem compreender (“Tenha paciência, não está vendo que seu pai está ocupado?!”). A realidade foi partilhada, deixava de existir o mundo da criança e o mundo dos adultos, ambos estavam juntos em um momento em que o querer de um tinha que esperar o querer do outro e, para tanto, a criança precisava compreendê-lo.
Nas conversas com minha sobrinha mais velha, de nove anos, as explicações detalhadas de “o que”, “por que” e “como” faremos algo sempre são valorizadas por ela e recuperadas durante o processo: “Você não falou que depois do jogo do seu time iria brincar comigo?”. Ai de mim se eu não sustentar um combinado, ela me regula a ação e aprende a se autorregular, esperando o jogo do meu time terminar. Ela sempre suscita o que há de melhor em nossa relação: não vivemos uma em função da outra, mas temos o prazer imenso de conviver, de estarmos juntas, de brincar e conversar de forma verdadeira. Não estamos o tempo todo juntas ou seguindo as regras dela; apenas convivemos de forma partilhada, mesmo que às vezes ela fique entediada por alguns instantes, pois, afinal, isso faz parte da aprendizagem.
Educar para a autonomia é entender que a convivência humana é efêmera, acaba. Portanto, devemos preparar os pequenos para que aprendam a ficar sem nossa presença, aos poucos, mas cada vez mais. Lembrando que esse processo não tem receita, é construção que se faz em parceria, na convivência.
*Doutoranda em Psicologia da Educação na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Mestre em Educação do programa Formação de Formadores também pela PUC-SP. Pós-graduada em Aprendizagem Cooperativa e Tecnologia Educacional pela Universidade Católica de Brasília (UCB). Licenciada em Pedagogia pela Universidade Metropolitana de Santos (Unimes) e graduada em Direito pela Universidade Católica de Santos (UniSantos) e em Administração de Empresas pela Fundação Lusíada. Atualmente é professora universitária na Unimes e atua como formadora de professores e equipes pedagógicas.