Julci Rocha*
A educação condizente com o mundo contemporâneo é uma construção de várias mãos.
Os avanços tecnológicos têm transformado o mundo de tal forma que podemos perceber tais mudanças no nosso dia a dia. Nossa geração pôde perceber que a forma de nos comunicar, por exemplo, mudou drasticamente após o advento da internet.
Dos tradicionais telefone e fax, passamos para o e-mail, os sistemas de mensagens instantâneas via computador (ICQ, Messenger etc.), os aplicativos de celular utilizando dados (Whatsapp e outros) até as chamadas de vídeo (Skype, FaceTime e outros). O sistema de comunicação é apenas um dos sistemas que sofreram mudanças radicais graças à tecnologia digital.
O sistema produtivo de modo geral também foi afetado de alguma maneira. A automação de processos, por meio da ascensão de sistemas inteligentes e dos robôs, modifica consideravelmente a demanda das novas gerações de trabalhadores. Vale ressaltar que a automação não é um processo exclusivamente de nossa era. Basta pensar que os cavalos foram trocados por carros e os escribas, pela prensa de Gutenberg. Porém, a grande velocidade com que essas transformações acontecem é uma característica de nosso tempo.
Jack Ma, empresário chinês, cofundador do grupo Alibaba e professor de inglês por formação, apresentou uma fala bastante “provocativa” no Fórum Econômico Mundial de 2018, em Davos. Ele disse que a educação tem um grande desafio: “Se não mudarmos a forma como ensinamos, daqui a 30 anos estaremos em apuros”.
Para ele, aquilo que ensinamos aos estudantes no modelo educacional vigente remonta a 200 anos e está baseado na transmissão de informação. Jack Ma afirma que as máquinas são mais espertas do que nós para lidar com informação e que, portanto, a educação deveria se ocupar de algo mais importante do que isso, algo que as máquinas não são capazes de fazer. Afinal, do que a educação deveria se ocupar?
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), documento normativo sobre aquilo de que as escolas devem se ocupar em nosso país, fornece indícios para responder à questão. A BNCC possui dez competências gerais, que são as finalidades dos processos educacionais durante toda a Educação Básica. Essas competências se reúnem às disciplinas de toda a trajetória educativa do estudante, articulando-se na construção de conhecimentos, no desenvolvimento de habilidades e na formação de atitudes e valores. As dez competências definidas pela BNCC são resumidas como:
1) conhecimento; 2) pensamento crítico, científico e criativo; 3) repertório cultural; 4) comunicação; 5) cultura digital; 6) trabalho e projeto de vida; 7) argumentação; 8) autoconhecimento e autocuidado; 9) empatia e cooperação; 10) responsabilidade e cidadania.
Algo que justifica a escolha dessas competências é o fato de que elas são ferramentas essenciais para a solução dos problemas contemporâneos. Novos problemas exigem novas soluções, que só serão alcançadas por pessoas criativas, que saibam comunicar e colaborar uns com os outros, que pensem criticamente e sejam solidárias.
Analisando o cenário apontado até aqui, é possível perceber que uma educação que tenha como objetivo desenvolver essas competências não poderia estar mais pautada na transmissão de informação, como sinalizou Jack Ma. Da mesma forma, se uma escola quer desenvolver tais competências, precisa repensar não apenas o que ensina, mas a forma como ensina.
O modelo educacional vigente, baseado na transmissão da informação, utiliza práticas, em sua maioria, condizentes com seu objetivo. Processos expositivos, com a fala centrada no professor, cuja habilidade de memorização torna-se muito importante para o sucesso do estudante, não são experiências educacionais suficientes quando falamos em desenvolver competências. A competência é desenvolvida por meio da exploração, da interação com os pares, da argumentação, da experimentação.
Nesse movimento de fomento a uma nova educação, mais coerente com as necessidades do século XXI, escolas e professores buscam desenvolver novas experiências de aprendizagem. Chamamos de “metodologias ativas” a organização racional de um caminho pedagógico que tem como finalidade o protagonismo do estudante na construção dos conhecimentos, habilidades, atitudes e valores necessários a sua formação pessoal, profissional e cidadã. As estratégias, por sua vez, são as experiências vivenciadas pelos estudantes dentro dessas metodologias.
Consideramos que os estudantes são protagonistas quando alguns desses componentes estão presentes:
- há a possibilidade de gestão do seu aprendizado: os estudantes têm espaço para planejar seu próprio trabalho,
compartilhando com o professor a responsabilidade pelo processo;
- há a possibilidade de os estudantes sinalizarem interesses pessoais e necessidades específicas, que
serão consideradas no planejamento das experiências de aprendizagem;
- as experiências de aprendizagem possibilitam a prática e a “mão na massa”, não somente conceitos e
fatos, uma vez que as competências envolvem a construção de conhecimentos para
agir no mundo;
- as propostas educacionais estão conectadas com o dia a dia dos estudantes e com os problemas
contemporâneos;
- há espaço para o diálogo e a colaboração entre os estudantes.
A busca por desenvolver novas experiências de aprendizagem faz que o papel do professor também se altere, deixando de ser o centro do processo educativo e atuando como um mediador do conhecimento e designer de experiências de aprendizagem.
Além dos papéis de professor e estudante, também os espaços educacionais são redesenhados para atender melhor às novas demandas. Das carteiras enfileiradas, passamos para salas multifuncionais, mobiliários flexíveis e a presença cada vez maior das tecnologias digitais.
Embora não sejam condição para que as metodologias e estratégias de aprendizagem ativa se concretizem, as tecnologias digitais possuem papel muito significativo nesse processo. Elas potencializam o desenvolvimento das competências e habilidades, além de fazerem parte de uma linguagem muito própria do nosso tempo. As tecnologias promovem novas formas de aprender e ensinar; permitem conhecer e conectar-se com outras realidades; habilitam a colaboração e construção de conhecimento em conjunto com os colegas, dentro e fora da sala de aula, além de permitirem que as experiências, valores e feitos sejam socializados com uma audiência muito maior do que a escola.
É importante que uma escola que esteja em busca dessa nova educação promova uma progressão dessas experiências ao longo da vida acadêmica dos estudantes. A Educação Infantil e o Ensino Fundamental – Anos Iniciais, primeiras etapas da Educação Básica, são desenvolvidos na maior parte do tempo por um mesmo professor durante o ano letivo. Se esse professor tiver condições de planejar uma jornada de aprendizagem ativa ao longo de todo o ano, ele poderá fazê-lo. Já no Ensino Fundamental – Anos Finais, a dinâmica se altera, pois cada componente curricular é de responsabilidade de um especialista.
Caso apenas um professor especialista decida transformar suas aulas com o uso de metodologias ativas, os estudantes sofrerão uma ruptura significativa em suas estratégias, e certamente o professor inovador terá que enfrentar grande desafio na consolidação desse trabalho. A transformação dos currículos educacionais com foco em metodologias e estratégias de aprendizagem ativa certamente será mais eficiente se fizer parte de uma cultura de inovação implementada por toda a escola, de forma progressiva.
Para essa cultura de inovação acontecer, temos muitos desafios. Afinal, estamos falando de um modelo educacional em vigor há aproximadamente 200 anos. A formação continuada dos educadores, por exemplo, é uma ferramenta fundamental nessa transição, assim como materiais didático-pedagógicos coerentes com esse novo modelo.
Às famílias e à sociedade como um todo cabe entender esse novo contexto de educação e a necessidade urgente de mudança, apoiando e valorizando práticas que caminhem nessa direção, estabelecendo um canal de comunicação aberto e franco com as instituições de ensino. A educação condizente com o mundo contemporâneo é uma construção de várias mãos.
Julci Rocha
Licenciada em Letras pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e pós-graduada em Gestão Educacional pela FMU, Design Educacional pela UFJF e Educação Inovadora pelo Instituto Singularidades. Pesquisadora da área de inovações em educação, cultura digital, metodologias ativas, ensino híbrido, design e cultura maker. É membro da Rede de Inovação para a Educação Brasileira (IEB), gerenciada pelo Centro de Inovação para a Educação Brasileira (Cieb). É também professora de pós-graduação do Instituto Singularidades e diretora-fundadora da Redesenho Educacional.